O Último Figurino.

Pode ser geral, mas eu sei é de mim. Ou melhor, sei das minhas. Das minhas memórias escondidas, das memórias que me ficaram de um tempo em que o mundo era medido pelo meu tamanho e que mesmo hoje, apesar de saber o que é o princípio da relatividade, ainda guardo cá dentro como se verdades fossem. E não largo.
Hoje, não sei se pela chuva que nos quebra se pelas crianças em casa, dei por mim a visitar-me e a relembrar as fantasias perdidas às quais nunca fiz um update. As verdades entretanto aprendidas estão cá, mas não as substituiram, criaram outro espaço e foram guardadas noutro ficheiro. Aquele ficou assim, tal como foi criado, porque todos precisamos de guardar o que nos sobrou da infância. E se agora até já conheço o Sr. Volta, ou o Sr. Ampère, ou o Ohm, ou o Franklin ou mesmo o Edison, também sei, porque sei e só assim me faz sentido, ou só assim me faço sentido, que a electricidade foi inventada pelo meu pai. E não abro mão dessa certeza. Nem das outras.

O Último Figurino é mais uma dessas memórias guardadas em caixas especiais. O Último Figurino é, ou era, que não sei se ainda existe, uma loja na baixa de Coimbra. Uma loja de "modas", como na altura se dizia, e consigo ainda descrevê-la.
Lembro-me das prateleiras com os cortes para os tailleurs, das sedas para os vestidos, das malhas do lado esquerdo, do pronto a vestir, da cave com a roupa de homem, dos empregados Laurel e Hardy, como lhes chamava, com o Sr. Fausto, alto, magro e de ar sisudo a mandar cumprimentos para o senhor engenheiro, e o outro, de quem nunca me lembrava do nome, mas baixinho, redondo e sorridente, a mostrar o tecido fantástico para o casaco de Inverno, com carimbos a dizer Made in Italy, e que era o mesmo, exactamente o mesmo, que já tinhamos comprado na fábrica da Covilhã antes de ter viajado até Milão para regressar à pátria com uns carimbos novos.
Mas este Último Figurino, o real, coexiste pacíficamente nas minhas memórias com o outro de que me recuso desfazer. E o outro foi um por mim criado e por mim continua a ser guardado.
O outro fazia parte do meu mundo fantástico e a ele está ligado a minha mãe. A minha mãe acabada de chegar de Coimbra onde tinha ido tentar comprar um vestido para aquela festa. A minha mãe, a senhora bonita que era casada com o meu pai. A senhora que era a senhora que eu nunca iria ser, porque era senhora, e era loira, e tinha olhos azuis, e gostava de vestidos e sabia coisas de senhoras, segredos por elas guardados tal como o druida do Astérix guardava o da poção. E chegada de Coimbra dizia a frase que me convencia que aquele mundo, o mundo onde ela vivia, não era de acesso a todos. Nem a todas. Dizia que tinha ido ver o último figurino.
E estas eram as palavras mágicas que me faziam partir até ao lugar que ainda cá guardo. No meu mundo, naquele meu mundo, via a minha mãe a subir umas escadas de madeira baça, com um velho corrimão agarrado à parede, até chegar a uma sala no primeiro andar. Era uma sala quase secreta, uma sala escondida da rua das multidões. Via-a do lado direito de quem sobe, com uma janela empoirada ao fundo a dar para a Ferreira Borges. À volta das paredes tinha cadeiras encostadas, cadeiras ocupadas por outras senhoras como a minha mãe, e no meio uma mesa pequena. Em cima dessa mesa, por todas cobiçado e consultado, estava o último figurino. E a minha mãe entrava, sentava-se, e esperava a vez dela para poder ter nas mãos aquela revista mágica, que eu não sabia de onde vinha nem como lá chegava, mas que era sempre a última de todas, a mais nova, a que trazia as novidades que as senhoras procuravam e que estavam ali só para elas. Só para os olhos delas, daquele clube secreto.
Era O Último Figurino e o acesso a ele tornava a minha mãe uma sacerdotisa daquele culto. Era importante, uma senhora importante, só podia ser.
Esta memória está guardada cá dentro tal qual como muitas das outras, das reais. E se consigo descrever bem a loja onde acabei por ir muitas vezes, onde comprei os meus vestidos de bailes de finalistas, a loja real, a que lá está ou esteve, não consigo sentir o cheiro dela como consigo sentir o cheiro daquela sala que nunca existiu. Daquela sala que guardava os segredos do Último Figurino.
Ou talvez este sítio tenha existido e na sua irrealidade seja, para mim, mais real que o outro. O outro que nunca foi meu, só meu, como este foi até hoje.

28 comentários:

Anônimo disse...

Belíssimo texto no esplendor da memória sentimental muito mais do que simples registo de fotografia. Como o figurino vinha de Itália e os tecidos da Covilhã também poderei dizer «Bello lavoro!»
JCF

Anônimo disse...

também gosto de viajar nas tuas estórias, de repente dou comigo lá no meio,é quase como um filme com umas janelas irreais, poética de um tempo suspenso

O Santo disse...

e por cá iamos à Rua dos Fanqueiros, tinha lá tudo, até um famoso sobretudo castanho que me custava vestir mas que me fazia um rapazinho daqueles à séria

Visconde de Vila do Conde disse...

Sobrinho, acabei de escrever sobre sobretudos! Afinal temos uma referência em comum..

Teresa disse...

Têm duas. Pelo que parece o Visconde também é "um menino lindo". Se for lindo de morrer, ou pelo menos de se ficar doente, então são mesmo da família.

Teresa disse...

Anónimos (re)conhecidos, obrigada.

Visconde de Vila do Conde disse...

Teresa, refaço. Sou um lindo menino. O que é completamente diferente de menino lindo, como, abusivamente, escrevi.

Teresa disse...

Santo, não sei porquê acho que devias vestir o sobretudo. E alimentares-te melhor. Acho que andas a passar frio e a comer mal.

Teresa disse...

Ora bolas, e eu que já estava a fazer contas de cabeça...
(mas nem um bocadinho laroca?)

Visconde de Vila do Conde disse...

Teresa, nem um bocadinho...

(o que é que esperava de um tipo com fotos às riscas?...)

Visconde de Vila do Conde disse...

(fatos às riscas)

Marias disse...

Eu ía com a mãe ao chiado e ao Grandela seria?). Tinham umas escadas rolantes muito altas, e cada andar uma secção. Na minha só havia umas calças de fazenda e umas Lois e depois lanchávamos lá. E eu antes queria ir aos Porfírios...

Anônimo disse...

Eu ia gamar roupa à Maconde. Cheguei a sair com três pares de calças vestidos...

(Ganda post, Chefa!)

Teresa disse...

Mais magrito na altura, han?

(tenho aprendido contigo e nunca vou conseguir aprender tudo...)

O Santo disse...

era o Grandela... as primeiras escadas rolantes do pais.
tiozinho, nunca gostei do sobretudo, foi dado quase novo, oque de facto foi uma pena.
chefa... se tb tiveres uma foto minha escondida na carteira té te chamo de mama...

Teresa disse...

e tem de ser escondida?
(desde quando me chamas chefa?)

O Santo disse...

sempe xamei. como mama a foto nao pode tar logo a mao de semear

Teresa disse...

não me lembro... à mão de semear não está, está no meio de mais umas quantas...

O Santo disse...

hummm... isto promete um "que queres hoje para o jantar que estás cada vez mais magro"

Teresa disse...

Costeletas. É o que há...
(magrito mas com barriga)

O Santo disse...

(e que queres que faça aos superdesenvolvidos abdominais?)

Teresa disse...

não percebo palavras compridas...

O Santo disse...

(loira...)

Teresa disse...

(muito)

O Santo disse...

trafulha, isso sao mas e os brancos que pretendem a maioria (tipo anti USA)

Teresa disse...

se os brancos se atreverem a uma dessas aplico a táctica nº 5 e dou cabo deles...

Anônimo disse...

(A táctica nº5?)

Teresa disse...

os números quem os sabe de cor é o santo, mas acho que é essa...