Também se sente em código binário

Se já alguma vez partiram um braço sabem bem o que quero dizer. Carregamos com o gesso durante umas semanas e quando finalmente nos tiram aquela coisa medonha e pensamos que recuperámos os nossos movimentos percebemos que o braço, que um dia foi nosso, ganhou vida própria. De repente deixou de nos obedecer e é vê-lo a bater no chão sem pegar na mala, a virar a chávena do café, a acertar-nos no olho quando queremos acender um cigarro, totalmente alheio às nossas ordens precisas, como se fosse um qualquer Fernão Capelo Gaivota a fazer acrobacias no céu.
Ele vai ao sítio, que o nosso cérebro só precisa de um tempo para refazer uns cálculos - muito bem, este gajo está mais leve, portanto a força e a velocidade vão ter que ser reajustadas e se p é igual a t e s é a distância até à mesa então façam vocês as contas que a minha calculadora interna sabe fazê-las mas eu não sou tida nem achada no assunto.
Foram seis semanas, ou até menos, mas adaptámo-nos a uma nova realidade braçal e lá por termos visto, com estes olhos que a terra há-de comer, que o gesso já lá não está, a nossa cabeça continua a funcionar como se estivesse e nós reagimos instintivamente dando ordens a um braço com um peso muito diferente do que ainda achamos que tem.
Isto pode parecer estranho, porque afinal foram só umas semanitas contra toda uma vida, mas foram o suficiente para nos descoordenar os gestos. Aprendemos a viver com o gesso, da mesma forma que voltamos a aprender a viver sem ele.
Nas minhas últimas semanas, nas nossas, vários aparelhos de gesso foram sendo postos e tirados mudando as regras habituais das nossas forças e equilibrios, mas podemos ter a certeza que os cálculos já foram refeitos e não corremos o risco de andar a bater nas paredes.
Quantas coisas mudaram nas nossas vidas num par de anos? Muitas, imensas, mas mudou principalmente a nossa forma de interagir, de estar, de nos relacionarmos com os outros.
Durante milénios os círculos por onde andavam os nossos outros foram-se alargando e depois de saído da nossa caverna o outro foi ficando mais e mais longe, até se transformar num outro que é quase nada, num outro que nunca catámos, nunca cheirámos, nunca vimos, mas que, contra todas as lógicas, sentimos. Mas ensinaram-nos que o que os olhos não vêem o coração não consegue sentir e apesar de agora a situação ser outra teimamos em hesitar, em ter medo de arriscar novos gestos, de aprender novos sentires, como se não soubessemos que o braço pode derrubar a chávena umas vezes, mas depressa aprende o caminho certo até ela.

Muitos dos meus afectos diários estão aí, desse lado do monitor, onde os meus olhos não os vêem mas onde os consigo sentir. E talvez nem nunca os meus olhos os tenham visto, mas o meu coração sente-os. E tenho amores e raivas iguais às que tenho por quem toco, vejo, mexo, escuto ao pé do meu ouvido.
Tal como quando puseram o gesso no meu braço não percebi que lentamente os meus instintos se foram adaptando àquele braço mais pesado que o normal, que a minha cabeça passou a controlá-lo de uma forma diferente, com outros pesos e medidas que não eram os habituais mas que eram eficientes, também não percebi que fui adquirindo novos filtros para a minha percepção dos outros. Mas eles estão cá, perfeitamente apreendidos e assimilados e se entre mim e esses novos outros existe um aparelho de gesso a minha cabeça já o percebeu e reorganizou-me os gestos para que não ande por aí a dar murros nas paredes. Mas se, de repente, o peso do braço volta a mudar, se tiro este filtro novo e tento usar o que sempre conheci e que acho que sei controlar, arrisco-me a fazer asneira. As regras são diferentes, usei forças diferentes, e não posso querer misturá-las. Não sei como avaliei, não sei como funciona este novo mecanismo, mas também nunca percebi como funcionava o antigo. A minha cabeça, os meus sentidos, tratam do assunto e eu, como já disse, não me preocupo muito com os cálculos que faz - sei que acabam sempre por ser os certos.
Nos últimos tempos conheci muitas pessoas que nunca vi. Gosto de umas, não gosto de outras e sei porque gosto e porque não gosto. Preciso de as olhar nos olhos para saber se posso confiar, preciso de lhes ouvir a entoação da voz, de lhes perceber o torcer das mãos? Sim, foi assim que fomos ensinados a avaliar, mas o meu braço também foi ensinado a abrir uma porta e um dia, apesar da porta estar mesmo ali na minha frente, de a estar a ver, de lhe poder tocar, bati com a mão no puxador porque calculei mal a distância. Cá dentro já tinha sido configurada uma outra realidade e, num instante, tinha aprendido a viver com ela.
Não posso pretender que se gosto sem ver é porque gosto mal, ou pouco, porque se o instinto me disse para ir até ali é porque o até ali era o certo. E não corro o risco de ficar longe da mesa nem de meter a mão no café, porque isso pode acontecer nos primeiros momentos mas cá dentro a máquina não pára e num instante afina o gesto.
Não sei o que mudou nos meus sentidos, na minha forma de ler o mundo, para ter começado a aperceber os outros, os desconhecidos, tendo deles só o que me chega numa fiada de letras num ecrãn branco, ou mesmo uma voz num telefone, uma voz que saiu de uma garganta húmida, de uma boca quente, mas que entretanto viajou até aqui numa onda e passou a sinal eléctrico que me faz vibrar o tímpano e me diz qualquer coisa, mesmo que esteja longe, muito longe, da garganta que a gritou ou da boca que a aqueceu. Sei é que consigo avaliar a voz ou as letras, transformá-las em gente e dizer se gosto ou não gosto, se sinto ou não sinto se me mentem ou me falam verdade.
E o meu coração sente. E eu deixo-o sentir sem lhe fazer muitas perguntas, que ele, tal como a cabeça, também nunca me deixou espreitar os cálculos que faz. O que sei, e sei de certeza absoluta, é que, mesmo que os olhos não vejam, ele não me engana e se entornar uma ou duas vezes o café depressa vou aprender como se pega naquela chávena e para que lado está virada a asa.

31 comentários:

cereja disse...

Excelente, Teresa.
Penso, ou "sinto" tantas vezes isso. Pensar que até conheço gente que realmente não conheço de todo. Sentir que por vezes até as conheço melhor do que outras a quem vejo muitas vezes mas mal sei o nome. Esta comunidade estranha que se forma 'aqui' não se explica.Tenho amigos que quase sentem ciumes do tempo que passo na net, ou a ver alguns blogs. Não lhes sei explicar bem o que me atrai. Creio que os vou mandar ler este teu post...

Anônimo disse...

bonito Teresa, foi sempre isto que me prendeu no Cabra, dar com um desabafo de alma de quem não teme, não teme porque é, está inteira na vida

O Santo disse...

a evolução não era o ficar sem sisos?

Anônimo disse...

Estás muito evoluída, ò espécie de gaija gira.

António Sabão disse...

A asa da chávena de preferência do lado direito!

Teresa disse...

Emiele, resta saber como se conhece.
Eu há muito que acredito que esta é uma nova linguagem, mas por ser nova não tem de ser melhor ou pior. A sensação que sempre tive foi que por aqui conhecemos as pessoas entrando nelas por outras portas, mas continuamos a ser estimuladas por elas e a responder a esses estimulos.
Sabes, acho que com os meus amigos posso ter imensas coisas em comum. A maior parte das vezes é uma rua, uma escola, um curso, um outro amigo, um percurso de vida. São essas as coisas que acabam por gerar afectos. Tem piada porque nos amigos que vamos fazendo por aqui as únicas coisas que podemos ter em comum serão hábitos, interesses, gostos. Isso valerá menos que a tal rua ou o curso no ranking dos afectos?

Teresa disse...

Z, isso é o que tens de mais certo por aqui. Desabafos de alma. E às vezes é com cada desabafo que até a alma se encolhe.

Teresa disse...

Santo, dentes de siso nunca tive. Nunca reparaste?

Teresa disse...

Sabão, desde que acerte nela pode virar a asa para o lado que mais jeito lhe der.

Teresa disse...

Espécie???
Espécie??!!!....
Eu acerto-te o passo Bocage, acerto acerto...
(e ficas a saber, ó zarolho, que muito deste post foi feito a pensar em ti)

shark disse...

Era um trocadilho com a tag, juro!

(E ficas a saber que só a minha feroz modéstia impediu que enfiasse a carapuça mal acabei de o ler. Ah, e ficas também a saber que entras pelas pessoas por outras portas mas nesta pessoa posso garantir que foi pela porta da frente. E ainda acrescento que faço aqui desabafos mas não encolhe nada. Nadinha!)

Teresa disse...

E juras com ou sem bíblia?

(não era carapuça, o z disse que era um desabafo de alma e o z tem sempre razão. Quanto a não te encolher nada isso é outra cumbersa...)

shark disse...

É sem, é sem. Eu sou mesmo agnóstico, não é como o outro.

(Estiveste bem. Estás cada vez melhor na complicada arte das entrelinhas...)
;)

Anônimo disse...

sempre é muita responsabilidade, basta às vezes,

olha-me este, tramado

Teresa disse...

Isso parece caça às bruxas. só falta atirá-lo à água para ver se flutua ou não..

Quase sempre, pronto.

(aah, lago mais cheio ms mesmo assim muito abaixo de normal para esta altura. Ainda faltam uns bons 50 cm até a água começar a bater nas escadas dos patos.)

Anônimo disse...

bem me parecia que esta chuva está justificada, ebm nos próximos dias vai ficar corrigido,

quando estiver bom diz, que é para eu apanhar o elevador transideral e ir tocar nas costas do Velhote

(boca cheia de mon chéri's)

Anônimo disse...

Embota ratde e más horas aqui fica a grata leitura e parabens do anónimo JCF (sou um sem-abrigo informático)

Visconde de Vila do Conde disse...

Excelente post, Teresa. É mesmo isso, é conhecer as pessoas por outras portas, é criar empatias (ou não...) pela forma como o outro se exprime, é ser suficientemente inteligente para saber ler o que está escondido, para saber perceber quem realmente é o outro (está quase sempre lá o verdadeiro "eu", no meio das palavras).

Eu não conheço nenhum dos meus companheiros deste blog (e talvez nunca venha a conhecer) mas às vezes apetece-me dar-vos um abraço, outras apetece-me dizer-vos que vai tudo correr bem (corre sempre), outras ainda rio-me com o que aqui se diz e, finalmente, não poucas vezes gostaria de ter a intligência para escrever como alguns de vós.

gaija do norte disse...

tu sabes chefa, cabra, que já escrevi este comentário um cento de vezes e que só não desisto de o escrever porque a isso me obrigas. é muito difícil comentar-te quando concordo com tudo o que dizes... não dá luta!

(já agora, em chávena fria, ou nunca mais me despacho. eu mesmo viro a asa para o lado que me der mais jeito.)

NLivros disse...

De facto um excelente e bonito post.

Teresa disse...

JCf, obrigada.
e amanhã este canto vai ser ter também

Teresa disse...

Visconde, não gostei nada desse talvez nunca. Eu prometo que providenciarei para qu estjamos todos apresentáveis...

(e sgora, daqui para aí, é isso mesmo que dizes, o eu está sempre lá. pode ser dentro de um fato às riscas ou no meio de umas centenas de palavras. Só mudam os trapinhos)

Teresa disse...

Gaija, cada vez gosto mais de ti. Este post começou hoje de manhã, quando me lembrei das chávenas frias.Só tu para ires lá direita.
E, com este teu comentário confirma-se o que digo no post - esta é só uma outra forma diferente de sentir os outros mas o gostar ou não tem as mesmas razões.

Teresa disse...

iceman, obrigada.

Marias disse...

A asa da chávena de café ponho sempre para a esquerda, nem sei porquê. Se calhar para a segurar enquanto mexo. Mas um amigo meu faz isso, para não beber do mesmo lado que os outros clientes...

Anônimo disse...

portanto, em princípio foi direitinha uma para aí abaixo por causa do lago et al,

mas aí em Setembro já tinha chovido bem mas pronto foi para o aquífero

(sempre preocupações)

Marias disse...

Ah, o post. Pois é, é mesmo isso.
Novas tecnologias....

Anônimo disse...

Percepção extra-sensorial? Intuição?
É esse n`importe quoi que vem on ne sait d`où que nos aproxima dos deuses.
Felizmente, a investigação começa a perceber a importância da inteligência emocional e a debruçar-se sobre ela.
E, (estou convicta) o reflexo desses afectos e desafectos chega a quem os despertou que os descodifica adequadamente da mesma forma intuitiva como chegaram a quem os sentiu ( nesse caso, a Teresa). Como se de um jogo de espelhos se tratasse. Sem precisar das três dimensões.
Felicito-a pela excelência do post. Se é fácil sentir-se "isso", não é nada fácil analisá-lo e expô-lo tão lucidamente como o faz já que, um pouco paradoxalmente, sentimos imensa dificuldade em definir aquilo que nos é bastante próximo e/ou intrínseco e/ou visceral.

Anônimo disse...

E sim, é a evolução da espécie mas não no senso comum do afastamento do homem em relação ao animal. Ao invés: ela dá-se com a reaproximação do homem ao animal e com a consequente recuperação da primazia do instinto.

O Santo disse...

do post... pois, tb percebo o que dizes e nunca parti um braço. e nunca espreitei pa dentro da tua boca xefa... desculpa la, pa proxima faço.
tb ponho a asa para a esquerda mas e simplesmente pq sou canhoto pode ser Sabao?
e tio, o conhecer acho que pode e deve acontecer, espero, mas o escrever penso que isso foi modestia tua.

Anônimo disse...

então e o lago?