Por muitas unhas negras.

Há um exercício que desde há muito gosto de fazer. Começo por imaginar um mar primitivo e um batráquio estranho. Depois imagino-o a espreitar a praia, a pôr uma pata ainda quase guelra na areia e a evitar, por um bocadinho, um imenso lago de lava. Depois vejo um símio qualquer a saltar da árvore segundos antes do raio a destruir, ou uma moca primitiva a falhar por milímetros a cabeça do lado, ou uma perna com uma enorme ferida que não infectou, ou uma flecha que falhou o alvo. E vejo cruzados em batalhas sangrentas, navios que se afundaram deixando um punhado de gente agarrada às tábuas, um pedaço de pão encontrado numa velha arca e que evitou a morte certa no Inverno rigoroso, e vou correndo uma história de milénios mas que é feita da soma de muitas vidas, vidas cheias de surpresas, de altos e baixos, de bençãos e infortúnios, vidas que se foram encadeando umas nas outras desde os primórdios dos tempos até chegarem aqui, até chegarem a hoje. Com sorte. Com muita sorte.
E no meio dos milénios e das vidas e das surpresas, estou eu. Eu, que se não apareci de geração espontânea, só posso ser o resultado da sorte, da imensa sorte que o batráquio lá de cima teve. Da sorte que durante mais tempo do que aquele que consigo imaginar foi desviando espadas e afastando maldições para que um dia, eu, pudesse nascer.
E é assim que gosto de olhar para mim, para a minha vida, como uma excêntrica cheia de sorte, que apesar de ter muito menos possibilidades de ter nascido do que as de acertar nos números do euro milhões, ganhei - nasci! E volto a agradeço à sorte, ou lá como lhe queiram chamar, que num dia de Sol como o de hoje tenha feito o exército romano poupar aquela minúscula aldeia onde uma avó que nunca conheci rebolava no feno com um avô qualquer.
Este fim de semana voltei a pensar que as nossas vidas se fazem de pequenos golpes de sorte e que só mesmo o nosso umbigo não nos deixa perceber o quanto afortunados somos. Maldizemos os azares mas esquecemo-nos de agradecer sempre que as coisas correm bem. E elas correm bem a grande maioria das vezes. Estamos vivos, não estamos?

Ontem, depois de uma noite de tempestade, acordámos cá em casa no meio de mais um azar. O vento puxou a chuva, a água entrou no telheiro, chegou aos cabos eléctricos da arca congeladora e o resultado estava à vista pela manhã. Uma arca queimada, uma parede completamente negra e as traves do telhado a mostrarem bem até onde tinha chegado o fumo, ou o fogo, ou o que quer que tenha andado por ali. A primeira reacção foi de medo, muito medo. Eu não conseguia aceitar que a casa onde dormiam as minhas filhas pudesse ter ardido sem um enorme alarme me ter despertado. Como é que eu não tinha feito nada, não tinha dado por nada, como era possível um azar tão grande.
Foi a minha filha que me fez pôr os pés no chão, que me fez perceber que estava a maldizer quando devia agradecer.
Mamã, se tivessemos acordado não se sabe o que podia ter acontecido. Assim não aconteceu nada.
Eu pensei no chão molhado, nos cabos eléctricos a arderem, no pânico que me teria feito correr para lá para tentar apagar o incêndio e nesse momento resolvi parar e pensar como ela estava coberta de razão, como mais uma vez tinha, tinhamos, sido protegidas pelo destino, bafejadas pela sorte, e como era muito mais gratificante pensar que uma outra flecha foi desviada sem ter atingido o alvo. E como é muito mais fácil ser feliz assim, como é muito mais sereno pensar em toda a sorte que vou tendo que viver angustiada com o registo dos poucos azares que vão acontecendo.
Não sei se é optimismo se loucura, mas sei que vou continuar a acreditar que a minha vida é feita de sorte. De muita sorte.

14 comentários:

Marias disse...

Podes crer, escaparam de boa...má.

Anônimo disse...

que sorte teres a tua filha, para te poder fazer ver, e que sorte a minha ter-vos aqui para ler e (re)aprender.

andei a brincar com a inversão do tempo, o meu selvagem está quase,

agora vou ao nimas

Visconde de Vila do Conde disse...

Somos dois...

(se a sorte for uma coisa equilibrada, estou lixado nos próximos quarenta anos...)

Anônimo disse...

Pois, pois...
Conta lá mas é com mais pormenor essa história do rebolanço no feno que eu sou um leitor muito interessado nos pormenores mais sumarentos dos teus posts...

Teresa disse...

sumo, um dia conto os rebolanços. já imaginaste quantos não foram precisos para estarmos agora aqui?

Teresa disse...

visconde, como jogador devia saber que sorte atrai sorte...

Teresa disse...

z, é só preciso saber ouvir, mais nada.

Teresa disse...

e de quantas não escapamos todos os dias sem sequer nos apercebermos?

Marias disse...

Uma vez aí no Algarve, vem um gajo e foge-lhe o carro na curva e espeta-se no muro de uma casa, por trás de mim e dos miúdos....depois do nosso carro ter passado.

Anônimo disse...

calma meu caro, as quedas têm um lado sublime que é redescobrir o belo-em-si. Tem um lado muito chato cá para mim que é desfazermo-nos das coisas, não é das coisas-em-si, pela parte que me toca, mas a negociação e o empata, nem lá nem cá, a modos que de Sá Carneiro.

enfim, azul é um gajo ultrapassar-se, li algures e desde que fique ganzado tudo bem ou logo se vê

Anônimo disse...

e desapego, desapego, eu bem vou repetindo pode ser que vá ficando

sem-se-ver disse...

grande Francisca.

mais uma vez.

(bom ter sido só um susto, e muitos cozinhados :-)

(e vê lá é se tratas das obras estruturais de que pelos vistos a casa necessita)

Teresa disse...

Grande mesmo, mas isso até já sabiamos. Quanto às obras estruturais acho que primeiro tenho de fazer as minhas. São mais urgentes.

sem-se-ver disse...

(F)