Escolher um título de Proust só podia dar nisto...

Tiago Mota Saraiva reproduz hoje no 5dias um texto de Pedro Levi Bismarck que está tão fundamentalmente errado que é difícil dizer o que está principalmente mal nele.

O peixe que Pedro Levi Bismarck nos tenta vender é em resumo o seguinte: O capitalismo destruíu a infância e a cultura.

A quem propósito vem isto agora? De Martim Neves, cidadão que aos 16 anos se dedicou à venda de t-shirts não muito originais, e que vem demonstrar que qualquer pessoa pode vender seja o que fôr desde que o saiba vender.

De caminho diaboliza-se o "marketing ideológico capitalista", os slogans, e uma coisa chamada "marketing económico".

Martim Neves, a quem Bismarck trata por "Jovem Martim" para nos fazer pensar numa criança, é para Bismarck o exemplo mais triste de uma sociedade que deixou "que o actual marketing ideológico capitalista colonizasse esse último território por explorar da vida humana – a infância".


Nem vou tentar contradizê-lo nem mostrar-lhe o contrário.

Vou apenas explicar-lhe que antes da sociedade moderna e capitalista, aos 16 anos não se era criança nenhuma, era-se um homem. Antes da sociedade moderna e capitalista, as crianças começavam a trabalhar aos 3 e aos 5 anos, mais recentemente aos 10, quando acabavam a escola primária. A infância, caro Bismarck, era uma coisa para ricos. Tal como a cultura o era, e como ainda o é. A esmagadora maioria da população passa ainda hoje completamente ao lado da cultura, nas sociedades mais ricas como nas mais pobres. A cultura tal como a apregoa, é de quem tem tempo e dinheiro para a fazer. Os outros são meros consumidores quase cegos do que lhes vão impingindo.

Fez bem em citar o exemplo grego, e a Grécia antiga, em que a democracia era exercida pelos "cidadãos", ou seja, os naturais de Atenas e donos de terras, excluindo todo o resto, nomeadamente a esmagadora maioria constituida por servos e escravos. Servos e escravos que também não participavam na "cultura", não sabiam ler, nem iam às peças, nem tocavam harpa.

As sociedades modernas quiseram dar educação e infância a mais gente, a toda a gente. Mas cedo perceberam que isso sai brutalmente caro. Algumas optaram pela via do socialismo, onde toda a gente é pobre mas educada e culta. E funcionou, excepto na medida em que aquela gente toda não queria ser pobre, nem viver numa sociedade regulada e paternalista que lhes condicionasse os passos. Outras sociedades optaram por uma via capitalista e "democrática", dando personalidade jurídica às empresas, dando-lhes direitos e deveres, e deixando que elas se tornassem numa peça fundamental das sociedades. As empresas tornaram-se escadas para a ascensão social de quem fôr capaz de as subir. Mas não só as empresas - a liberdade de ser uma empresa, a liberdade de comerciar livremente na sociedade, a liberdade de promover os seus produtos, os seus serviços, a sua empresa.

O estado diz que a actividade de Martim Neves é legal. Diz que o ensino obrigatório são 9 anos. Diz que o salário mínimo existe e é legal. Diz várias outras coisas.

Pedro Bismarck diz que é uma tristeza um jovem de 16 anos dedicar-se ao comércio e usar estratégias de marketing para ter sucesso. Diz que aos 16 anos ele se devia estar a dedicar à infância e à cultura.

Pedro Bismarck está no seu direito de achar isto tudo e de o dizer. 
Como eu estou no meu direito de dizer que acho que ele está profundamente errado.
Como estou no meu direito de dizer que o que Pedro Bismarck diz ilustra perfeitamente tudo o que está errado com uma certa esquerda portuguesa, que quer a infância e a educação e a cultura e é contra o capitalismo e a favor dos grandes valores, mas depois quando se lhe pergunta não sabe quem vai pagar isto tudo, nem sabe explicar para que servem mil licenciados em Filosofia em Portugal, e que fica muito triste porque os mais de cem licenciados em Antropologia que saem por ano das faculdades não encontram emprego "na sua área curricular" e acabam como caixas do Continente.

A sociedade capitalista assente no marketing está a destruir os valores da nossa sociedade. Está. Concordo com Pedro Bismarck nisso. Mas está a destruí-los introduzindo desde há décadas um ímpeto consumista em toda a gente. Está a destruí-los forçando os pais e as mães de família a trabalhar oito e nove e mais horas longe de casa e a levar mais duas no trânsito ou nos transportes, e a não passar esse tempo com os filhos. Está a destruí-las porque a televisão e os jogos tomaram o lugar de muitos pais na educação dos filhos. Está a destruí-las porque criámos nos filhos a ambição de ter mais. De ter brinquedos e jogos e roupas só por ter, e se for preciso depois não lhes ligar, e querer mais do mesmo no ano seguinte.

A sociedade capitalista está a destruir os valores da nossa sociedade porque lhes ensina o preço de tudo, mas o valor de nada. Oscar Wilde definiu assim os cínicos. Talvez seja isso que está a acontecer.

Mas não vi nada em Martim Neves, que não conheço, que me leve a fazer dele símbolo de coisa nenhuma. É simplesmente alguém que, no mundo em que vive, no mundo que lhe deram para viver, soube interpretar as regras e explorá-las a seu favor.

Compreendo que isso enoje muita gente, especialmente quem anda para aí a pregar o fim do capitalismo mas não tem nenhum modelo alternativo a propôr. Até entendo como é que se chega a esse ponto - quando vivemos sempre na sombra de alguém que gera riqueza e nos subsidia para fazermos aquilo de que gostamos. Quando dizemos que somos contra os impostos e as instituições e as corporações e nos esquecemos de quem paga o dinheiro que ganhamos.

Mostrem-me um funcionário que nunca tenha trabalhado para a máquina do Estado capitalista, mostrem-me um actor que nunca tenha participado numa obra subsidiada pelo Estado nem por uma grande empresa, mostrem-me um poeta que nunca tenha beneficiado do marketing corporativo ou institucional, mostrem-me um arquitecto que só tenha feito projectos para particulares ou para PMEs, mostrem-me um engenheiro que nunca tenha trabalhado para nenhuma das empresas que promovem e fomentam o marketing e o capitalismo, mostrem-me um investigador que não tenha sobrevivido à conta do dinheiro que o Estado recolhe em impostos sobre o capitalismo ou de subsídios desse mesmo capital, e mostrar-me-ão alguém por quem eu tenho todo o respeito e a quem admito, em enorme grau, justeza na opinião que queira emitir.

Quem encontrou uma via que lhe permita e permita à sociedade desenvolver-se de uma forma distinta da actual pode e deve advogá-la e mostrar como o fez, e apontar caminhos. Outros quanto mais falam mais parecem estar a advogar que se corte o ramo onde estamos todos sentados.

Martim Neves é um cidadão português que decidiu fazer dinheiro na sociedade em que vive e produzir riqueza para ele próprio e participar no tecido produtivo nacional. Não o conheço de lado nenhum e até pode ser pessoa que eu não tenha interesse em conhecer. Mas só por ter feito alguma coisa por ele próprio em vez de se ficar até aos 40 anos a viver por conta de outrém, mesmo que a tirar cursos e a fazer cultura, tem o meu respeito.