As casas grandes.

Não sei se é um efeito Cem Anos de Solidão, mas impressiona-me ver casas grandes vazias. Não gosto de quartos fechados onde já ninguém entra, mesas de jantar que foram encolhendo até ficar um paninho num canto que para um prato não é preciso mais, estendais com molas velhas já apodrecidas, enormes panelas nas prateleiras lá de cima que à mão de semear fica o tachinho para a batata solitária.
Parece-me que a vida foi saindo de fininho, num até já que nunca mais foi, e deixou ecos e fotografias amarelas onde antes havia gente e vozes e choros e gargalhadas.
Vivi sempre em casas grandes, com caves e sotãos e pessoas a chegar e a ir e mesas que se iam abrindo até tocarem quase quase no fundo da sala, e primos e tios e avós e baús cheios de segredos e histórias de fim de noite onde o hoje e o ontem se entrelaçavam em fantásticas maravilhas que estória que é história tem esse condão.
Mas as casas e os dias e a vida e as vidas foram sendo ocupadas com fornos micro-ondas, onde tudo é rápido, e limpo, e deixa tempo e espaço para o que é importante afinal, mas onde não acontece nada e só as aranhas vão fazendo ninho.
Fomos ganhando tempo ao tempo para o entregar às teresas guilhermes que nos matam o tempo ganho e o vendem em spots publicitários, aos sodukus de fundo de jornal e às virtualidades do virtual que até parece que está gente mesmo aqui, no canto da nossa sala de fundo de corredor.
E as nossas casas foram encolhendo e as nossas vidas encolheram com elas até ficarem vidas pequeninas com ilusões de grandeza.
Temos vidas e casas bonsai. Está lá tudo, mas falta o resto. Faltam as enormes raízes que se enterram na terra que não é de vaso, falta o tronco onde nos podemos encostar, os ramos que nos deixam trepar, as folhas que nos dão sombra e as sementes que levamos connosco para que outra árvore como aquela nasça no sítio para onde vamos.
Gosto das casas da minha vida e vou tentando regá-las como posso e vou arejando quartos, usando as loiças todas dos armários, enchendo-as de vida e de gritos e de gente.
Outras já não consigo salvar.
Esta também era uma casa grande, e tinha uma varanda enorme que o mar quase lambia, e as portas do rés do chão davam para a areia da praia e estava sempre cheia de gente.
Passava por lá a meio do mês de Agosto para uns dias com os outros avós, e os outros tios e os outros primos e a Alzira das fotonovelas empilhadas no quarto. Era a casa onde a avó Maria passava os meses de férias, a casa alugada para o Verão, e onde os netos corriam nos corredores por onde os filhos e o Peter já tinham corrido antes. A casa onde eu brincava no quintal de areia a que também se chamava praia.
A casa que um POOC que nunca vi por lá diz que é dele e que vai ter de ir abaixo, porque a areia da praia não é sítio para casas. Mas eu tenho a certeza que não preciso de me preocupar, que noutro lugar qualquer vão aparecer muitos quartinhos com micro-ondas embutidos e com plasmas na parede e uma caminha suplente para a criança, que as nossas vidas bonsai não hão-de dormir ao relento quando vão de férias e também não precisamos mais do que isso.

O Estado pode ser obrigado a expropriar uma casa particular, construída em alvenaria há 75 anos no areal da Praia da Mira, para a remover do local.

2 comentários:

Anônimo disse...

tenta olhar isso tudo com bonomia, as memórias ninguém tas tira, e a superioridade do teu urano obriga-te a saber discernir que afinal os fantasmas existem, só que eles são bons, não são maus, mas são muito sensíveis e assustam-se com os sustos dos outros

fica bem cabrinha

Marias disse...

A minha mãe foi a segunda filha e é a segunda de cima a contar da esquerda. Se fosse agora que a média, é dois filhos, ainda me safava! E a chefe também, que é do filho mais velho. Já os meus inúmeros primos não sei...