- M'mã, o que é isto?
- O meu pager!... Andaste a mexer na minha gaveta das memórias...
- Para que serve?
- Servia para receber mensagens.
- E como se escreve?
- Não se escreve, as mensagens mandavam-se por telefone.
- Como se telefona?
- Não dá para telefonar. Recebia-se a mensagem por escrito e só podiamos responder se estivessemos perto de um telefone fixo, que não havia telemóveis.
- Então isto não servia para nada!...
Quinze anos. O meu pager tem quinze anos. Na altura, quando me o puseram nas mãos, achei que tinha levantado mais uma âncora.
Desde umas férias em Benidorme, dez dias sem dizer água vai nem ligar para casa, que não ia a lado nenhum sem deixar morada ou direcção. Tinha sido "sugestão"do meu pai, que dessa vez, quando finalmente me pôs os olhinhos em cima, não comentou a minha falta de bronzeado, as noites de Benidorme continuam sem sol?, mas pediu-me para assinar uns cartõezinhos. É que, explicou ele, podiam ser úteis se eu tornasse a desaparecer. Se morresse alguém era só preencher e assim sempre dava os sentimentos e não passava por mal educada.
O pager, o tal pager que a minha filha acha que não servia para nada, deu-me o resto da liberdade que eu pensava que faltava. Querem saber onde estou? Não é preciso. Mandem uma mensagem para o 0943.201.235 que eu entro em contacto...
Desfraldei as velas, fiz-me ao leme e embarquei na doce ilusão de uma vida boa, muito mais fácil, muito mais livre, muito mais a minha e longe da deles, que viviam noutros tempos. Era nova, não pensava, e não percebi o que vinha a seguir, que os presentes, mesmo os mais apetecíveis, são quase sempre envenenados.
Mandei dezenas de mensagens e não respondeste.
Doutora boas férias e entre em contacto com o escritório o mais depressa possível.
O seu gerente de conta pede um telefonema urgente.
Poucos, muito poucos anos depois, estas carícias transformaram-se em toques de telefone com som nokia, que nos chegam a todas as horas, que nos invadem o fundo da caverna, a casa de banho e a esplanada ao sol. Atendidos ou não, já nos deram cabo do descanso, do dia, do bom humor ou da paciência.
Os meus tempos mudaram e a minha vontade ainda não se habituou.
Escrevo posts na piscina ao sol, como quem nasceu de portátil nas mãos e ache normal ver estas letras a desaparecerem em direcção ao céu azul até voltarem a ser letras num outro sítio qualquer, mas como as bolachas que ontem fiz com a receita da avó. Não prescindo do hoje, mas continuo a carregar o enorme lastro do ontem. Os dois mundos não se juntam, que os ovos de aviário não dão dourado aos biscoitos.
Somos a geração fiambre. Pais em cima, filhos em baixo e a nossa sandwich está completa. Minimalizámos a vida, mas ainda não perdemos a casa da mãe. Carregamos agendas electrónicas e guardamos nos armários da casa grande os nossos diários de infância e os bilhetes antigos do cinema. Ligamos para os telefones dos nossos filhos a avisar que estamos à porta da escola, mas achamos que podemos continuar a perguntar "onde estás?" quando ligamos para o telemóvel de alguém. Vivemos mergulhados neste novo mundo sem querermos tirar um pé do outro, daquele a que agora resolvemos chamar nosso. Queremos leite pasteurizado, açúcar refinado, ovos sem borradelas e queremos o sabor do leite creme dos domingos há muito idos.
E assim, entre dois telefonemas pelo Skipe e um email para a Finlândia, eu vou ter de perceber de vez que os lençois de linho bordados à mão, trazidos das arcas do enxoval religiosamente guardado no sotão da minha mãe, não podem ir para a lavandaria como os outros e que os meus dias, estes onde vivo, já não são os dias deles.
E vou ter de perceber que vivo num tempo de ninguém, onde o que era já foi e o que veio ainda não está.
Na ânsia de nos adaptarmos ao que não nos é adaptável questionámos as velhas regras, pegámos nos pagers e saímos pelo mundo sem morada ou direcção gritando liberdade, civilização, conquista, somos os melhores de entre os melhores.
Agora, quinze anos depois, estamos finalmente a entender que a caneta de tinta permanente não pode ser usada no notebook e que a vida de postal ilustrado também implica pagar 750 euros por pôr o tal lençol de linho a corar à varanda.
- O meu pager!... Andaste a mexer na minha gaveta das memórias...
- Para que serve?
- Servia para receber mensagens.
- E como se escreve?
- Não se escreve, as mensagens mandavam-se por telefone.
- Como se telefona?
- Não dá para telefonar. Recebia-se a mensagem por escrito e só podiamos responder se estivessemos perto de um telefone fixo, que não havia telemóveis.
- Então isto não servia para nada!...
Quinze anos. O meu pager tem quinze anos. Na altura, quando me o puseram nas mãos, achei que tinha levantado mais uma âncora.
Desde umas férias em Benidorme, dez dias sem dizer água vai nem ligar para casa, que não ia a lado nenhum sem deixar morada ou direcção. Tinha sido "sugestão"do meu pai, que dessa vez, quando finalmente me pôs os olhinhos em cima, não comentou a minha falta de bronzeado, as noites de Benidorme continuam sem sol?, mas pediu-me para assinar uns cartõezinhos. É que, explicou ele, podiam ser úteis se eu tornasse a desaparecer. Se morresse alguém era só preencher e assim sempre dava os sentimentos e não passava por mal educada.
O pager, o tal pager que a minha filha acha que não servia para nada, deu-me o resto da liberdade que eu pensava que faltava. Querem saber onde estou? Não é preciso. Mandem uma mensagem para o 0943.201.235 que eu entro em contacto...
Desfraldei as velas, fiz-me ao leme e embarquei na doce ilusão de uma vida boa, muito mais fácil, muito mais livre, muito mais a minha e longe da deles, que viviam noutros tempos. Era nova, não pensava, e não percebi o que vinha a seguir, que os presentes, mesmo os mais apetecíveis, são quase sempre envenenados.
Mandei dezenas de mensagens e não respondeste.
Doutora boas férias e entre em contacto com o escritório o mais depressa possível.
O seu gerente de conta pede um telefonema urgente.
Poucos, muito poucos anos depois, estas carícias transformaram-se em toques de telefone com som nokia, que nos chegam a todas as horas, que nos invadem o fundo da caverna, a casa de banho e a esplanada ao sol. Atendidos ou não, já nos deram cabo do descanso, do dia, do bom humor ou da paciência.
Os meus tempos mudaram e a minha vontade ainda não se habituou.
Escrevo posts na piscina ao sol, como quem nasceu de portátil nas mãos e ache normal ver estas letras a desaparecerem em direcção ao céu azul até voltarem a ser letras num outro sítio qualquer, mas como as bolachas que ontem fiz com a receita da avó. Não prescindo do hoje, mas continuo a carregar o enorme lastro do ontem. Os dois mundos não se juntam, que os ovos de aviário não dão dourado aos biscoitos.
Somos a geração fiambre. Pais em cima, filhos em baixo e a nossa sandwich está completa. Minimalizámos a vida, mas ainda não perdemos a casa da mãe. Carregamos agendas electrónicas e guardamos nos armários da casa grande os nossos diários de infância e os bilhetes antigos do cinema. Ligamos para os telefones dos nossos filhos a avisar que estamos à porta da escola, mas achamos que podemos continuar a perguntar "onde estás?" quando ligamos para o telemóvel de alguém. Vivemos mergulhados neste novo mundo sem querermos tirar um pé do outro, daquele a que agora resolvemos chamar nosso. Queremos leite pasteurizado, açúcar refinado, ovos sem borradelas e queremos o sabor do leite creme dos domingos há muito idos.
E assim, entre dois telefonemas pelo Skipe e um email para a Finlândia, eu vou ter de perceber de vez que os lençois de linho bordados à mão, trazidos das arcas do enxoval religiosamente guardado no sotão da minha mãe, não podem ir para a lavandaria como os outros e que os meus dias, estes onde vivo, já não são os dias deles.
E vou ter de perceber que vivo num tempo de ninguém, onde o que era já foi e o que veio ainda não está.
Na ânsia de nos adaptarmos ao que não nos é adaptável questionámos as velhas regras, pegámos nos pagers e saímos pelo mundo sem morada ou direcção gritando liberdade, civilização, conquista, somos os melhores de entre os melhores.
Agora, quinze anos depois, estamos finalmente a entender que a caneta de tinta permanente não pode ser usada no notebook e que a vida de postal ilustrado também implica pagar 750 euros por pôr o tal lençol de linho a corar à varanda.
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