Era também um Domingo. E era esta a hora, mais coisa menos coisa. No meu bloco quadriculado, com uma caneta de tinta permanente, muito mais permanente do que na altura parecia, escrevi o que ainda hoje tenho aqui na minha frente:
- Gráfica. Senhor José Augusto.
- máquina de barbear
- rádio de bolso no casaco sala de costura
- livro de instruções telemóvel e carregador (1.º gavetão debaixo camisa)
- pijama, robe e chinelos de quarto.
Foram os últimos recados que o meu pai me deu. Estava com o ar de sempre, do ainda não foi desta, do voltei a enganar a morte. Tinha tido mais um enfarte, mas que era isso, passado o susto do costume era só mais um para juntar à conta.
Não foi, foi o último, mas, por esta hora, esse ainda era um segredo bem guardado.
Morreu quase no virar do dia e a notícia chegou manhã cedo. Ainda hoje, seis anos depois, não consigo perceber como morre um pai e se dorme uma noite sem o saber, sem o mundo parar, sem as paredes cairem, sem os pássaros gritarem, sem uma tempestade desabar, sem um sinal qualquer que nos diga - o teu pai morreu, esta não é uma noite normal.
No minuto em que morreu eu estaria a fazer qualquer coisa, qualquer coisa sem sentido e que nunca seria suposto estar a fazer-se quando o nosso pai está a morrer. Eu tinha de estar distraída, que não consigo acreditar que a vida não nos diga que o nosso pai está a morrer e nos deixe continuar com as nossas coisinhas sem percebermos, naquele instante, o que está a acontecer. Assim, como um choque eléctrico, que vem do nada e para o nada vai, mas que nos pára. Ou foi mesmo maldade de quem manda, de quem sabia que aquele enfarte era o último e guardou segredo. De quem sabia que se eu soubesse tinha segurado o tempo e tinha discutido, refilado, argumentado, lutado, negociado e tudo o resto que costumo fazer e que aqui, quando o devia ter feito, não fiz.
Para tudo o que tive de fazer a seguir, mas que já não foram recados dados por ele, comprei outro bloco para anotar. Este, o das capas vermelhas, ficou por aqui.
Tal como ficou tudo o resto. A máquina de barbear, o rádio no bolso do casaco, o pijama, o robe e os chinelos, as instruções do telemóvel. E o livro, que nunca ninguém leu. Já não está na gráfica do Sr. José Augusto, que fui lá buscá-lo, mas continua embrulhado em pacotes de papel pardo atados com guitas que nunca foram desatadas.
Está à espera.
Tal como eu.
À espera que um dia, um destes dias ou de outros quaisquer, os nós sejam cortados e apareçam as provas que nunca passaram disso - provas finais, prontas a serem lidas, corrigidas e a seguir publicadas. À espera de, finalmente, serem o que ele queria que fossem - livro.
Também nisso, tal como eu.
Hoje, talvez por ser outra vez Domingo, vejo e revejo cada passo que dei há seis anos. E faço as perguntas que a minha filha me faz - será que podemos um dia parar o tempo, um instante que seja, e voltar atrás? Será que eu tinha conseguido olhar o estupor da morte de frente e dizer-lhe aqui, garanto, não passas? Será que, tal como ele queria, o livro tinha sido livro e eu tinha sido mais eu?
- Gráfica. Senhor José Augusto.
- máquina de barbear
- rádio de bolso no casaco sala de costura
- livro de instruções telemóvel e carregador (1.º gavetão debaixo camisa)
- pijama, robe e chinelos de quarto.
Foram os últimos recados que o meu pai me deu. Estava com o ar de sempre, do ainda não foi desta, do voltei a enganar a morte. Tinha tido mais um enfarte, mas que era isso, passado o susto do costume era só mais um para juntar à conta.
Não foi, foi o último, mas, por esta hora, esse ainda era um segredo bem guardado.
Morreu quase no virar do dia e a notícia chegou manhã cedo. Ainda hoje, seis anos depois, não consigo perceber como morre um pai e se dorme uma noite sem o saber, sem o mundo parar, sem as paredes cairem, sem os pássaros gritarem, sem uma tempestade desabar, sem um sinal qualquer que nos diga - o teu pai morreu, esta não é uma noite normal.
No minuto em que morreu eu estaria a fazer qualquer coisa, qualquer coisa sem sentido e que nunca seria suposto estar a fazer-se quando o nosso pai está a morrer. Eu tinha de estar distraída, que não consigo acreditar que a vida não nos diga que o nosso pai está a morrer e nos deixe continuar com as nossas coisinhas sem percebermos, naquele instante, o que está a acontecer. Assim, como um choque eléctrico, que vem do nada e para o nada vai, mas que nos pára. Ou foi mesmo maldade de quem manda, de quem sabia que aquele enfarte era o último e guardou segredo. De quem sabia que se eu soubesse tinha segurado o tempo e tinha discutido, refilado, argumentado, lutado, negociado e tudo o resto que costumo fazer e que aqui, quando o devia ter feito, não fiz.
Para tudo o que tive de fazer a seguir, mas que já não foram recados dados por ele, comprei outro bloco para anotar. Este, o das capas vermelhas, ficou por aqui.
Tal como ficou tudo o resto. A máquina de barbear, o rádio no bolso do casaco, o pijama, o robe e os chinelos, as instruções do telemóvel. E o livro, que nunca ninguém leu. Já não está na gráfica do Sr. José Augusto, que fui lá buscá-lo, mas continua embrulhado em pacotes de papel pardo atados com guitas que nunca foram desatadas.
Está à espera.
Tal como eu.
À espera que um dia, um destes dias ou de outros quaisquer, os nós sejam cortados e apareçam as provas que nunca passaram disso - provas finais, prontas a serem lidas, corrigidas e a seguir publicadas. À espera de, finalmente, serem o que ele queria que fossem - livro.
Também nisso, tal como eu.
Hoje, talvez por ser outra vez Domingo, vejo e revejo cada passo que dei há seis anos. E faço as perguntas que a minha filha me faz - será que podemos um dia parar o tempo, um instante que seja, e voltar atrás? Será que eu tinha conseguido olhar o estupor da morte de frente e dizer-lhe aqui, garanto, não passas? Será que, tal como ele queria, o livro tinha sido livro e eu tinha sido mais eu?
4 comentários:
Teresa, o meu pai também morreu, há mais anos, de enfarte. Na véspera eu tinha-o levado ao hospital, nessa tarde estava muito melhor, no dia seguinte à hora da visita o elevador parou, cheio de gente, Sta Maria, enquanto uma angústia indizível me subia pelo peito. Quando cheguei à sala de visitas carregava toneladas. Quando me disseram eu já sabia.
Os nossos mortos queridos continuam connosco, só tens que abrir a porta do ressentimento e do medo.
Faz qualquer coisa tua e dedica-lha. Cultiva o amor que lhe sentes como se regasses uma planta invisível. Confia.
beijo
z
És o meu Mundo,para o meu Mundo QUERO-TE trazer,teu Mundo tu me deste...
Agora todos os dias eu digo,PRECISSO DE TI!
A beleza profunda,da tua discrição eu encontro,na minha mente.
Vives na minha mente és o meu Mundo-TENTA PERCEBER-NO MEU MUNDO.
JAMAIS TE DEIXO.
(EU LI-SABENDO QUE É SEU PAI(AQUI ESTA UM GRITO)O MEU GRITO SERA ASSIM QUANDO UM DIA CHEGAR O DIA DO MEU)
NAO CHORAR,SO SORRIR,ASSIM SERA COMO NOS QUEREM VER :)
um beijo.
consigo perceber perfeitamente o que sentiste, o que sentes, não porque o tenha já experienciado - mas porque sim.
se calhar a vida avisou.
e o aviso foi exactamente esse, não merece a pena enfrentar o tipo negro de foice na mão. faz parte da vida, é tão normal e natural como qualquer coisa que estivesses a fazer naquela hora. a vida deixou continuar a fazer umas coisinhas porque pura e simplesmente continuou. e ele também continuou, como é prova este post uns anos depois... demais???
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