"Anda, Retornado"

Ao ler este post do Shark lembrei-me desta frase. E de quando a mãe de um amigo meu, "retornado", me contou a história onde ela apareceu, a história do dia em que estava à varanda da casa, da casa nova na terra para onde a tinham mandado e que nunca tinha sido a dela, e viu um "indigena" a levar um porco pela vara e como o ia encaminhando com a ordem medonha do "Anda, retornado"...
Lembram-se disso? Lembram-se dos "retornados"? Eu lembro. Lembro-me de como a pacatez da terrinha foi invadida por gente de cabelos compridos, jeans, camisas com cores estranhas, que diziam yeah e davam beijos na boca no átrio do liceu ...
C'um camandro, nós nunca tinhamos visto um beijo na boca assim, ali pertinho e ao vivo, a Gabriela era lá de outras terras, mas a Lili e o Tó estavam no canteiro das flores, por baixo da estátua do Infante de Sagres e nem eram a preto e branco. E as nossas mães, ou pelo menos a minha e mais duas ou três de quem lembro bem os nomes, fizeram novas regras e as meninas da casa não podiam andar com retornados, que isso era pior que fumar.
E lembram-se do resto? De como os retornados vinham roubar os empregos? E de como o IARN lhes pagava um dinheirão e nós, sim que Nós eramos Nós, tinhamos de os sustentar? E de como eram todos uns criminosos e uns drogados e uns sei lá que mais, que nós, o tal nós que vai sendo um nós diferente cada vez que o eles vai mudando, eramos os sensatos que tinhamos ficado por aqui a cuidar da pátria enquanto eles tinham embarcado numa aventura que se estava mesmo a ver que ia acabar mal?
Santo país este. País de muitos nós e muitos eles, país de muito mar e muito horizonte, onde todos temos alma de marinheiro mas onde continuamos a olhar de lado a marinhagem que nos chega de outros mares. Que para eles, para essa gente estranha, reservámos o Cais do Sodré de todos os vícios, lá longe, junto ao rio que se os traz tem que os levar, depois de por cá deixarem o couro e a cor da pele.
Mas também país de alma aberta, que ladra mas não morde, e onde o fado se confunde com as mornas e onde todos temos, queiramos ou não, sangues de muitos navios. Dos que vieram e dos que se foram. E dos que ficaram e fizeram que o nós já não se distinga do eles porque o vós se misturou com o nós num beijo encantado no canteiro de flores por baixo da estátua do Infante de Sagres.

7 comentários:

issufo napakova disse...

epá... estamos perante arqueologia social, ou apenas história! a minha avó, que deus (mil perdões pela minúscula - mas é só pelo estilo da escrita) a tenha, contava-me histórias de retornados (que eu sempre pensei que fossem gnomos ou fadas, consoante o género). mas já não me lembrava de tais histórias, não fora o post da cabra chefa. dizia a minha avó que em tempos idos, que já lá vão, uma série de gente foi para as colónias, por degredo, aventura ou razão qualquer, e por lá viveram uma série de anos, longe do bafo pestilento da antiga senhora que teimava em castrar as mentes dos que por cá teriam ficado (sem grande sucesso). uma ou duas gerações teriam sido suficientes para transformar as suas mentalidades (nuns aspectos para melhor e noutros para pior, que para mim não há bons e maus!). quando cerca de 20, 30, 40, 50 ou mais anos tiveram que sair das colónias porque, sim, a história não perdoa e regressar à terra dos seus pais, avós ou bisavós, a coisa não foi fácil mesmo porque a vida por cá também era difícil para a maioria das pessoas. mas como em todas as histórias esta também teve um final feliz e, vencidas as desconfianças e receios iniciais, as pessoas integraram-se todas e, com a revolução, contribuiram um bocado para um ajustamento na mentalidade geral, incluindo a sua.

Teresa disse...

e a história continua... felizmente!

Anônimo disse...

Para mim, o único mal foi ter conhecido alguns, que achavam que nós, os de cá, tínhamnos de continuar a ir pra lá, protegê-los. Tínhamos culpa de terem sido forçados a sair de lá. Os nossos soldadinhos abandonaram-nos ! Tiveram que fugir. Também concorda com isto, Teresa ? Nunca ouviu este tipo de coversa ? Não a irritou solenemente esses, os retornados, falarem assim ? Viveu essa época já adulta, ou era ainda adolescente ? É que eu, tive família em África, a proteger os que lá estavam e não gostei. E como eu, milhões de portugueses. A mim, nunca me agradeceram, só me acusaram de abandono. Por isso, que se lixem. E, sim tem razao, está tudo misturado, mas era bom se os mais novos soubessem como as coisas se passaram realmente.

Anônimo disse...

E a história continua, como se vê...

O Santo disse...

este é dos tais assuntos q a generalização tem mtas excepcoes, para um lado e pro outro da barricada

Anônimo disse...

Olha Teresa: na Banca foi um ver se te avias... Muitos nem bancários eram, trabalhavam em seguros ou em agentes de navegação mas bastava uma lista de 30 assinaturas para passarem a ser bancários. Diziam que era para os tirar do Rossio. Depois eram promovidos para serem estimulados em vez de premiados. Eram promovidos «antes» não depois. Foi terrível. a) JCFrancisco

Carlos Gil disse...

estou talvez há uma hora a ler este blogue - cxs incluídas, claro. e voltarei pois estou agradado nem que seja para mergulhar mais no baú. já nem me lembra bem como cá vuim parar mas acho que foi pelo blogue de Catarina Campos, etc, etc, etc: o habitual.
mas este post, melhor: a caixa de comentários deixa-me um amargo e não sou de guardar no bolso. O Santo falou bem. generalizar quanto a esta camada social que hoje só subsiste para efeitos de estatística histórica ou em mentalidades mal-resolvidas é perigoso. tal como dizer que todas as brasileiras são prostitutas, os ciganos ladrões ou os pretos membros de gans ou os empresários ladrões de impostos ou os funcionários públicos uns calões ou ou e ainda outro ou.
tanta lenga-lenga para resumir que em cada 'ou' há Gente e, gente, não há duas iguais. e, no caso concreto dos "retornados" o rolo da História, imparável, na esmagadora maioria não lhes foi meigo. a maioria também sem culpas individuais nas razões de (legítima) revolta pois não há povo com características culturais distintas doutrém que não aspire à sua independência, e com razão. culpados? só se por actores involuntários dum sistema pois certamente é pacífico que a politização antes do 25A ou era nula ou só num sentido. comportamentos repugnamtes, abusivos, declaradamente racistas? houve-os sim senhor. mas não era tão-tão como a mitologia faz crer que era.
fui para uma colónia com 7 anos e vim com 20. não tive tempo para 'explorar' ninguém - poderá ser argumentado. pois não. e sem me defender que isso nunca me passaria pela cabeça, aliço e ergo bem alta a bandeira de que me foi tirado um sonho dum País, o que achava ser o meu País, e com vinte anos vim conhecere a família que também não me conhecia. vim de costas vergadas. hoje, trinta e tal anos depois revisito a minha adolescência e olho o presente e penso que se é assim podia ter sido assado. ou não.
mas a merda é que não me foi na prática dada hipótese de escolher. e por isos a dúvida persiste. tinha 20 e não tinha compromissos com ninguém. como aos 30 já tinha 2 filhos, penso naqueles de 30, 40, 50 que comigo viajaram de 'costas vergadas' e sem saber o que os esperava.
eu tenho respeito por isso. e dói-me ler - hoje, 30 e tal anos depois - comentários assim que tais. como me dói quando leio 'dos brasucas', 'da ciganada' ou 'da petralhada'. é igual.

ps: o IARN deu-me no aeroporto 500 escudos. perguntaram-me se tinha para onde ir e eu tinha no bolso das calças a morada da "prima Améçia em Campo de Ourique", que não me via desde os tais 7 anos de idade. alguns não tiveram "primas Amélias".

desculpem o desabafo.

e parabéns à bloguista - voltarei como prometi: gosto de ler o que é bem escrito, conceito mais amplo que mera redacção e pormenores de estilo etimológicos