"e estende-se a massa até ficar da grossura de uma moeda de escudo"
Boa, já não me chegava a lenta evolução no nome dos bolos. Agora tenho referências arcaicas nas receitas.
Hoje foi tarde de cozinha e até nem estava a chover mas apeteceu-me. Estou farta de cozinhar a contra relógio e com objectivos definidos, porque alimentar duas crias que estão sempre famintas implica uma forma de atleta olimpico e um desenrasca ao nível do melhor tuga, mas hoje quis recuperar o prazer da colher de pau. É assim como passar um fim de semana num quarto de hotel com varanda para o mar e room service com o gajo com quem se dorme todos os dias há vinte anos. Redescobre-se o que já não se sabia que podia ser feito por prazer (ou penso eu de que...)
E agora, depois de um Bolo de Canela, dois tabuleiros de Bolachas de Garfo e antes dos Pãezinhos com Salsicha e Presunto, porque as minhas meninas esta semana não hão-de comer porcarias de bolicaos e croissants nos lanches da escola, é tempo de uma pausa para o cigarro e o copo de vinho que lá por não ter varanda para o mar nem roupa pelo chão convém fazer uma pausa para respirar.
E enquanto inspiro, expiro, dou uma passa e bebo um gole vou alinhavando por aqui umas bainhas.
A primeira, e a mais fácil, num tecido de estopa e com fios bons de apanhar, é a do nome dos bolos. O Bolo de Canela que está agora ali, em cima da mesa, recuperado dos sabores da memória, foi difícil de encontrar nos vários livros de receitas que por aqui andam. Ele estava lá, nos cadernos escritos à mão e com letra de escola primária, nos livros encadernados, no Moleskine de elásticos pretos, mas se a fórmula era sempre a mesma o nome, what's in a name?, foi acompanhando a ligeira penugem nas pernas, a gilette roubada ao pai, a água oxigenada, o Taity de bisnaga azul, a cera que escaldava, a Epilady manhosa, a marcação com três semanas de antecedência na Cristina do costume, o Laser que é uma treta, até se fixar novamente na gillete que já não é roubada mas ficou por aqui que desde que seja nova não quero saber de onde veio. E o bolo, o tal bolo, começou por se chamar Bolo Preto, passou a Bolo Mulato, viveu a fase eufórica do Bolo Escuro e a politicamente correcta do Bolo de Canela e fixou-se, finalmente, no Bolo Que Não Volto a Fazer Que Demora Horas no Forno e o Resultado não é Grande Espingarda Que Parece Borracha.
E no meio do caos que não existe numa cozinha que esteve toda a tarde de serviço alinhavo outra bainha. E esta é das complicadas, que a seda escorrega e é melhor marcar antes com alfinetes.
Passei a minha adolescência a ouvir a minha mãe queixar-se das filhas que "não sabiam fazer nada", não tinham "prendas femininas" e a ouvir o meu pai dizer que tinhamos era de saber pensar, o resto vinha por acréscimo. Na altura olhava para a minha mãe como A Dona de Casa, que sabia fazer tudo e que contrastava connosco que não sabiamos fazer nada. Ouviamos as longas histórias que ela contava da casa da avó, ouvíamos os elogios que lhe eram feitos, de como a casa e a família eram perfeitas e, pelo menos eu, pensava que por muitos anos que vivesse nunca teria essa sabedoria, essa capacidade de fazer funcionar o relógio do lar. Os meus voos eram outros e nunca saberia como pousar naqueles ramos.
Estes anos depois, muitos, dou por mim a olhar para trás e a pensar que me venderam gato por lebre. A minha mãe, afinal, era o que eu sonhava ser e eu sou, agora, o que sempre pensei que ela fosse. A minha mãe estava longe de ser A Dona de Casa porque ela era a Directora Geral. Geria duas empregadas, três filhos e um marido. Dava ordens, fazia com que fossem cumpridas, aprovava orçamentos e traçava as grandes linhas de gestão que os outros executavam. Cozinha? De cozinha sei eu e razão tinha o meu pai - só é preciso saber pensar. Eu, que sempre achei que nesses ramos não pousaria, é que afinal pousei neles e nos outros, que não tenho empregadas internas - bolas!, rica vida que devia ser, duas empregadas, um marido a trabalhar para nós, e os filhos de banho tomado a virem dar um beijo antes de irem para a cama depois do jantar na copa - não tenho quem pague as contas por mim, não tenho quem me deposite uma pensão no fim do mês. Mas tenho, pelo menos, a satisfação de ter acabado agora mesmo de ouvir a Irene, a empregada de há vinte e muitos anos da minha mãe, a dizer ao telefone Ai fez o Bolo Mulato? Gosto muito desse. Fica assim tipo borracha.
Obrigada Irene. Afinal o sacana do bolo é mesmo assim, não é falta de jeito meu. Pena não teres ligado antes que ao primeiro os cães chamaram-lhe um figo....
Boa, já não me chegava a lenta evolução no nome dos bolos. Agora tenho referências arcaicas nas receitas.
Hoje foi tarde de cozinha e até nem estava a chover mas apeteceu-me. Estou farta de cozinhar a contra relógio e com objectivos definidos, porque alimentar duas crias que estão sempre famintas implica uma forma de atleta olimpico e um desenrasca ao nível do melhor tuga, mas hoje quis recuperar o prazer da colher de pau. É assim como passar um fim de semana num quarto de hotel com varanda para o mar e room service com o gajo com quem se dorme todos os dias há vinte anos. Redescobre-se o que já não se sabia que podia ser feito por prazer (ou penso eu de que...)
E agora, depois de um Bolo de Canela, dois tabuleiros de Bolachas de Garfo e antes dos Pãezinhos com Salsicha e Presunto, porque as minhas meninas esta semana não hão-de comer porcarias de bolicaos e croissants nos lanches da escola, é tempo de uma pausa para o cigarro e o copo de vinho que lá por não ter varanda para o mar nem roupa pelo chão convém fazer uma pausa para respirar.
E enquanto inspiro, expiro, dou uma passa e bebo um gole vou alinhavando por aqui umas bainhas.
A primeira, e a mais fácil, num tecido de estopa e com fios bons de apanhar, é a do nome dos bolos. O Bolo de Canela que está agora ali, em cima da mesa, recuperado dos sabores da memória, foi difícil de encontrar nos vários livros de receitas que por aqui andam. Ele estava lá, nos cadernos escritos à mão e com letra de escola primária, nos livros encadernados, no Moleskine de elásticos pretos, mas se a fórmula era sempre a mesma o nome, what's in a name?, foi acompanhando a ligeira penugem nas pernas, a gilette roubada ao pai, a água oxigenada, o Taity de bisnaga azul, a cera que escaldava, a Epilady manhosa, a marcação com três semanas de antecedência na Cristina do costume, o Laser que é uma treta, até se fixar novamente na gillete que já não é roubada mas ficou por aqui que desde que seja nova não quero saber de onde veio. E o bolo, o tal bolo, começou por se chamar Bolo Preto, passou a Bolo Mulato, viveu a fase eufórica do Bolo Escuro e a politicamente correcta do Bolo de Canela e fixou-se, finalmente, no Bolo Que Não Volto a Fazer Que Demora Horas no Forno e o Resultado não é Grande Espingarda Que Parece Borracha.
E no meio do caos que não existe numa cozinha que esteve toda a tarde de serviço alinhavo outra bainha. E esta é das complicadas, que a seda escorrega e é melhor marcar antes com alfinetes.
Passei a minha adolescência a ouvir a minha mãe queixar-se das filhas que "não sabiam fazer nada", não tinham "prendas femininas" e a ouvir o meu pai dizer que tinhamos era de saber pensar, o resto vinha por acréscimo. Na altura olhava para a minha mãe como A Dona de Casa, que sabia fazer tudo e que contrastava connosco que não sabiamos fazer nada. Ouviamos as longas histórias que ela contava da casa da avó, ouvíamos os elogios que lhe eram feitos, de como a casa e a família eram perfeitas e, pelo menos eu, pensava que por muitos anos que vivesse nunca teria essa sabedoria, essa capacidade de fazer funcionar o relógio do lar. Os meus voos eram outros e nunca saberia como pousar naqueles ramos.
Estes anos depois, muitos, dou por mim a olhar para trás e a pensar que me venderam gato por lebre. A minha mãe, afinal, era o que eu sonhava ser e eu sou, agora, o que sempre pensei que ela fosse. A minha mãe estava longe de ser A Dona de Casa porque ela era a Directora Geral. Geria duas empregadas, três filhos e um marido. Dava ordens, fazia com que fossem cumpridas, aprovava orçamentos e traçava as grandes linhas de gestão que os outros executavam. Cozinha? De cozinha sei eu e razão tinha o meu pai - só é preciso saber pensar. Eu, que sempre achei que nesses ramos não pousaria, é que afinal pousei neles e nos outros, que não tenho empregadas internas - bolas!, rica vida que devia ser, duas empregadas, um marido a trabalhar para nós, e os filhos de banho tomado a virem dar um beijo antes de irem para a cama depois do jantar na copa - não tenho quem pague as contas por mim, não tenho quem me deposite uma pensão no fim do mês. Mas tenho, pelo menos, a satisfação de ter acabado agora mesmo de ouvir a Irene, a empregada de há vinte e muitos anos da minha mãe, a dizer ao telefone Ai fez o Bolo Mulato? Gosto muito desse. Fica assim tipo borracha.
Obrigada Irene. Afinal o sacana do bolo é mesmo assim, não é falta de jeito meu. Pena não teres ligado antes que ao primeiro os cães chamaram-lhe um figo....
10 comentários:
Directora geral da sua empresa doméstica, sim e tinha estatuto. Agora somos só desempregadas a tomar conta dos filhos. Digo eu.
sabor a canela? pensei que so havia chiclets...
Estatuto não sei mas tinha seguramente uma vida muito melhor que a minha...
E arroz doce, santo...
o gajo doce??? agora fiquei na duvida
Bem, se me deres uma lista posso fazer umas perguntas por aí e digo-te qual é a opinião maioritária, para que não tenhas dúvidas, claro...
lista de bolos? tartes e tortas incluidas?
Tortas.... mesmo muito tortas...
bolo preto e tortas... capaz de resultar num lanxinho de familia
Gosto de arroz doce, mas com ovos, limão e pouca canela. E quente, ó faz favor!
Li algures que uma mãe, dona de casa com dois filhos, por tudo o que faz devia receber 2000 euros.
O Estado que pague! Olha os postos de trabalho que estamos a roubar!
Educadoras, motoristas, cozinheiras, explicadoras, empregadas de limpeza, gerentes de compras, engomadoria... ai ai...!
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