Os projectos do Sócrates

Já paguei muitas “luvas” ao longo da minha vida. Nada de muito, mas variadíssimos poucos. Durante muito anos o envelope com a nota era um acessório essencial na minha profissão. De nada me serve dizer que tinha vergonha cada vez que o fazia, porque o fiz, e na plena posse de todas as minhas faculdades. Até há pouco tempo não conseguia marcar uma única escritura sem passar a notinha do costume - isto estava tabelado e tudo! - à funcionária do costume, nem arranjar uma certidão em cima do acontecimento sem deixar um largo troco, nem conseguir uma informação por telefone de qualquer funcionário anónimo a que não tivesse “untado” as mãos antes. Éticamente reprovável? Sem dúvida, e lá por ser eu a pagar e não a receber não me deixa melhor na fotografia.
Também já usei muitas vezes o meu telefone para ligar àquele primo e pedir uma especial atenção para o marido da vizinha que acabou de entrar nas urgências, ou para o amigo que só precisa de assinar o despacho no ministério da educação e a escola das minhas crianças vai abrir o ATL que me deixa trabalhar até mais tarde, ou para o chefe de serviços daquela câmara municipal, que preciso urgentemente que venham vazar a piscina que apareceu na cave.
O ditado diz que quem rouba um tostão rouba um milhão e, portanto, tenho de confessar a minha culpa - já corrompi, já trafiquei influências.
Interessante é que, nos últimos tempos, deixei de precisar de andar com notinhas em envelopes e uso o telefone muito menos vezes. Não houve uma estrela que desceu e transformou as pessoas do meu país em paladinos da ética, mas houve regras que mudaram e o tal poder que corrompe ficou melhor distribuido, melhor vigiado e a máquina que só funcionava com um óleo especial foi desmontada.
Na minha profissão noto uma enorme diferença nos últimos dois anos. Abriram-se serviços à iniciativa privada, abriram-se arquivos, facilitou-se o acesso à informação e apertaram-se as malhas do fisco. Funciona tudo muito melhor, toda a gente poupa tempo e dinheiro e é muito mais justo. As pessoas não mudaram, mudou foi a lei.
Não acredito na bondade intrinseca do homem que o Rousseau perdeu-se no tempo e o Kant já dizia que o mundo das ideias puras não era por nós atingível. Acredito que bons contratos fazem bons negócios e que não basta, como o meu pai gostaria, de escrever uma única cláusula - as partes devem comportar-se de acordo com o princípio da boa-fé.
Mas vamos ao Sócrates e ao silogismo do todos os politicos são corruptos, Sócrates é político, Sócrates é corrupto.
Não sei que projectos o tipo assinou, mas imagino porque o terá feito. Era legal? Talvez. Neste caso interessa-me muito mais saber como foram aprovados os projectos que ele assinou. Tiveram algum tratamento preferêncial? O autor dos projectos assinou projectos da autoria do Sócrates e este pagou-lhe na mesma moeda?
As leis mudaram, sim, mas há sempre um bocadinho de discricionariedade em todas as decisões. Está estudada e tenta-se que esteja limitada. Mas o policia pode decidir passar a multa ou não e o funcionário mudar o processo para o cimo da pilha. Não posso esperar que todos tenham uma ética irrepreensível, mas espero que a possibilidade de asneirar esteja limitada e que a sanção seja real e eficaz.
Nunca copiei num teste, mas sei que se o tivesse feito, mesmo na faculdade, nada de muito grave me acontecia. Numa universidade inglesa o copianço dá expulsão imediata e mancha indelével no curriculum. Há mais ética? Eu acho que há mais medo.
Não sei se o Sócrates é um boy, se é mentiroso, trafulha, vigarista ou imbecil. Sei que se apresentou a umas eleições e que tivemos todas as possibilidades de o escolher ou não e de meter o nariz em todos os possíveis podres. Sei também, que me lembro, que na altura andava tudo muito mais preocupado em lhe avaliar o carácter procurando-lhe as manchas nos lençois do que procurando-lhe as manchas no curriculum…

(comentário deixado por mim aqui e aproveitado para post, que é carnaval e estou com pouco tempo...)

10 comentários:

Anônimo disse...

Se me prometeres que também vais abdicar de ver os defeitos nos outros ganhas este amigo para a vida toda. :-)

Teresa disse...

já abdiquei há muito tempo apesar de às vezes ter de fechar os olhos para não os ver... Amigos?

shark disse...

Sim, nem que tenha que ser em braille.

Teresa disse...

em braille não sei. pode ser em morse?

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beijinhos

shark disse...

[Sim, é de evitar... :-) ]

E vai tu! (A maioria da malta não andou nos escuteiros nem tem pachorra para ir decifrar o que disseste, mesmo com a ajuda das tabelas...) ;-)

shark disse...

Fizeste-me lembrar uma declaração de amor que vi num blogue, num post e em morse também.
Amor à escuta...

(A comparação fica-se pelo "dialecto" utilizado, naturalmente)

Teresa disse...

nunca se sabe, que se foste escuteiro não se nota....
mas olha que aquilo ficou carote.15.000,00 euros, já viste?
e agora é que ficaste a perceber ainda memos, não foi?

shark disse...

Foi...

shark disse...

Ah, o salvamento! Pois é, carote...

Teresa disse...

Pronto. Eu traduzo. Era qualquer coisa tipo amigos sempre, desde que não me perca contigo no Gerês, que pelo que me foi dado ler...