Os deuses devem estar loucos. Ou não.

Quando, há mais de vinte anos, o Xi levou com uma garrafa na cabeça e começou a sua longa viagem até ao fim do planeta, a tribo dos Kalahari foi, oficialmente, apresentada à Coca-Cola. Consta, ou sou eu que o digo, que estes arborígenas eram o único povo da terra que nunca tinha ouvido falar daquela bebida bizarra que primeiro se estranha e depois, consta também, se entranha.

Coca-Cola.
A única bebida no mundo que todos sabemos se gostamos ou não porque todos, um dia, a provámos. Podemos amá-la ou odiá-la, mas dificilmente poderemos dizer que não sabemos o que é.
E é isto, só isto, que lhe faz a grandeza. Esta capacidade única de ser reconhecida, agora até pelo Xi, que vivia nas profundezas da Namíbia.

Há coisas assim. Poucas. E há pessoas assim. Menos ainda. Podemos amá-las ou odiá-las, mas não podemos dizer que não as conhecemos. E, se mais não fosse, isto, só isto, far-lhes-ia a grandeza.

Em 1992 recusei-me a ir a Alvalade. Deve ter sido dos poucos concertos que falhei. Coca-Cola até bebo, mas dele não gostava. Dancei-lhe as músicas até à exaustão, tentei copiar-lhe os passos de robot, mas embirrei-lhe sempre com o branco. Primeiro o das meias, depois o da luva, a seguir o da cara e por fim o branco da honra, pago a peso de ouro.
Mas ontem, quando num zapping fui parar lá, fiquei colada ao ecran até às cinco da manhã. Vi tudo, ouvi tudo, andei pelo mundo só para saber o que já sabia - da Austrália a Tóquio, de Los Angels a Curral de Moinas não houve um único canal de televisão onde não tenha visto o Thriller. Jacko Wako estava em todo o lado e era A Notícia.
E sim, tinha de ser a notícia, porque mais nada havia, na noite de ontem, que fosse tão universal assim. E eu sabia que naquele momento, em todo o mundo, era esse o assunto que andava nas bocas das gentes. Aquele ser bizarro, mais bizarro que a tal bebida, tinha morrido e tenho a certeza que até o Xi, nas profundezas da Namíbia, deu uns estalos de língua para contar ao vizinho.

E isto, quer se goste ou não, é um fenómeno demasiado grande para ser ignorado. Génio, louco ou muito provavelmente as duas coisas, Michael Jackson tem aquela grandeza que nós, mortais incógnitos, admiramos. Mesmo que o odiemos a ele.
É que são poucos os homens, isto se os houver, que pudessem estar mais de dez anos afastados das luzes do mundo e afogados em escândalos e conseguissem parar o Google porque lhes parou o coração.
Quando foi noticiada a morte de Jackson, a afluência à Internet foi de tal forma elevada que os coordenadores da Google pensaram que estavam a ser atacados por piratas informáticos e desligaram o motor de busca durante meia-hora, para se protegerem.

Mas Michael Jackson, goste-se ou não, foi genial. E essa genialidade sobreviveu às misérias humanas que carregou e parou o mundo na hora da sua morte. E ontem, pela primeira vez, vi o Thriller de fio a pavio e esqueci todo o branco de que nunca gostei para me deliciar com este fabuloso Black or White.
Dez minutos da mais pura fantasia e genialidade. Como poucos, muito poucos, conseguiram algum dia criar. E é essa mesma genialidade, só pode ser, que segurou a minha filha de 11 anos horas seguidas na frente do computador até devorar, no You Tube, todos os vídeos daquele girino de casaco vermelho de quem ela ontem nunca tinha ouvido falar, mas de quem tem andado a tarde toda a trautear as músicas.

Primeiro estranha-se. Depois, definitivamente, entranha-se.

16 comentários:

Mente Quase Perigosa disse...

E quem é que não anda a trautear músicas do homem, hoje?

Eu andei até à hora de almoço com o Billy Jean e partir daí com it's black it's white lá lá lá...

calamity jane disse...

"No matter if you're black or white", dizia ele. Mas a verdade é que ser black parecia matter para ele, e muito. Mas nunca foi tão engraçado e talentoso como enquanto foi black. Depois tornou-se white e perdeu a piadinha toda. Acho que, acima de tudo era um ser profundamente infeliz...

Teresa disse...

CJ, eu não gostava dele como homem e não o apreciei por aí além como músico. no entanto foi um fenómeno e algumas das coisas que criou foram geniais.
Quanto a ser preto ou branco acho que seria mais uma das tais misérias dele. Acho é que não pode ser acusado de racismo por passar a branco. Afinal também quase passou a mulher e não ouvi ser acusado de feminista. era só louco. Ponto final.

Teresa disse...

E como trauteias bem o Billie Jeans...

calamity jane disse...

Como sabes, chefa?

(eu acho que de facto o tipo teve alguns golpes de génio. Músicas que eu na altura detestava mas às quais entretanto me rendi)

calamity jane disse...

(sempre fui mais Prince and the Revolution...)

CybeRider disse...

(Ora, pois, tivesse eu lido isto antes das 15H00... Escusava de andar a enterrar o morto dos outros)

Só não sei se o gajo era louco, (assim MESMO louco); ou apenas louco como eu mas com mais dinheiro, menos convicções, e (outras) taras... Daí o benefício da dúvida que lhe dou ser mais curto.

:)

Rosa Negra disse...

Tereza, o post está fantástico, e concordo com tudo, ele foi sem dúvida um dos últimos artistas cuja obra atravessou décadas e gerações. Deste leque de "imortais" (e sem contar com grupos como Deep Purple, Rolling Stones ou U2), já só resta a Madonna.

Só um pequeno reparo: a música chama-se Black or White.

Anônimo disse...

O Triller original tinha 14 minutos...

E a Farrah Fawcett

Visconde de Vila do Conde disse...

Não consigo deixar de pensar no desasossego em que deve estar o Menino Jesus...

Teresa disse...

Cyber, se de génio e louco todos temos um pouco há quem tenha muito. Acho que era o caso dele.

Teresa disse...

Rosa Negra obrigada. Reparei na minha troca do black e do white, influências do andrógino?, mas fiquei na dúvida se corrigia ou não. vou fazê-lo.

Teresa disse...

Anónimo, os dez minutos a que me refiro não remetem para o Thriller que tem 13 minutos e alguns segundos mas para o vídeo do Black and White.

Teresa disse...

Visconde o Menino Jesus já deve saber defender-se que aquilo lá no céu está cheio de homens da igreja...

Nirvana disse...

Vim aqui parar por indicação do CybeRider. Obrigada Cybe. O texto está fantástico, e até fui ali buscar uma coca-cola para acompanhar e fazer companhia ao Xi.
Do MJ já pouco há a dizer que não tenha sido já dito. Eu, apesar de não ser fã dele, fico com aquela pontinha de pena porque ele foi grande, sem dúvida, para a música, mas (na minha opinião) pequeno para ele.

estouparaaquivirada disse...

CUIDADO COM OS ANALGÉSICOS!
Também eu tive pena que ele tenha morrido.
Agora penso nos que estão vivos e que vivem na "corda bamba" não nos dêem mais desgostos.

ABAIXO os ANALGÉSICOS!!!