A grande questão - serei a pessoa certa para educar duas crianças?

Percebi há pouco tempo que não gosto é de guarda-chuvas - apesar de umbrella ser a minha palavra preferida em inglês! - porque de chuva gosto muito.
Gosto de ouvir a chuva lá fora, sim, Santo!, há gente estranha..., e gosto de andar à chuva lá fora. Talvez esta seja mais uma daquelas coisas que gosto de fazer para marcar bem o meu estatuto de pessoa adulta - ando à chuva e como latas de atum inteirinhas.
Pensando bem nem foi a chuva, mas o atum, o meu grito do Ipiranga. Lá chegou um dia em que, a medo ainda e a olhar para os lados, peguei numa lata de atum, abria-a, fui buscar um garfinho e comi tudo, tudo tudo, sozinha, sem dar nada a ninguém. Uma lata de atum só para mim. E senti-me crescida.
O dia 29 de Setembro, na quinta dos meus avós, era o dia do feijão frade com conservas. Saíamos todos muito cedo para ir ao Tortosendo, à feira de S. Miguel, comprar as cebolas e as botas caneleiras para o Inverno e não havia hora para almoçar. Quando chegávamos a casa a sopa, o feijão e a salada dos "pitos" com cebola (alface cortada como o caldo verde, a única salada que acompanhava aquele prato) estavam prontos, que em casa ficava uma criada de serviço, e só faltavam as conservas. Dava-se então início ao ritual do atum.
O meu avô dirigia-se ao bar da sala, as conservas eram demasiado preciosas para serem guardadas na despensa, tirava do bolso a chave da porta, abria-a e começava a escolher as latinhas. Algumas já tinham um bocadito de "ferruge", eram do ano passado do ano passado, mas não devia fazer mal. Nós, os netos, iamos contando as latinhas escolhidas, esperando sempre que fosse tirada mais uma. O avô, o único que podia tocar naqueles bens preciosos, levava as latas para a mesa e começava a abri-las. Isto é, tentava começar. Antes ainda havia o baile mandado do costume, com a minha avó a largar uns ó José! ai valha-me Deus, olha os piquenos, cada vez que a chave se partia, ou a chave ficava presa na lata e já não dava para aproveitar para a próxima latinha e não havia mais chave nenhuma, e o meu avô dizia mais uma praga. Abertas as latas e delicadamente deitado o desejado conteúdo nas travessas, as travessas do atum, pois claro!, as mais pequenas lá de casa, o meu avô temperava a salada e servia a refeição, tentando ser o mais parcimonioso possível na distribuição da lasquinha de atum a que cada um de nós tinha direito.
Nunca percebi a solenidade do atum. Numa casa onde se serviam cabritos inteiros e onde o meu avô nem se aproximava da cozinha, aquele ritual da lata do atum deixava-me sempre fascinada. Era uma coisa de grandes, de certeza, algo que um dia me seria permitido fazer, isto se o meu marido não se chamasse José e não guardasse as latas no bar de que só ele teria a chave.
Sim, foi definitivamente uma das conquistas da minha vida, o dia em que me lembrei que podia meter o dedo na argolinha da lata do atum, sem precisar de chaves e de pedir autorização a um avô serrano, pequenino, de olhos azuis e mau génio, mas que me chamava Terezinha e me servia uma dose dobrada - "são todos iguais, os meus netos, mas a Terezinha é a Terezinha"... e esta frase perseguiu-me durante a infância e carregava-me de culpas pela injustiça feita aos outros - e me lambuzei de atum e senti, finalmente, que nalgumas coisas, como latas de atum, era eu que mandava.
A chuva veio mais tarde. Muito mais tarde. Mas ainda agorinha cheguei lá de fora onde me passeei à chuva, de impermeável, galochas às flores e chapéu na cabeça, sem um maldito e incómodo guarda-chuva por cima de mim e sem ouvir a ordem fatal - vem já para dentro, olha que disparate, ainda apanhas uma pneumonia.
Gosto de andar à chuva. Gosto de sentir-me abrigada debaixo da roupa e de lamber os pingos torcidos que me molham a cara. Gosto de não ter guarda-chuvas em casa e de sair com as miúdas quando está a chover.
Gosto destas pequenas rebeldias que me fazem feliz, como uma latinha de atum comida sozinha e uns pingos de chuva na cara. Gosto de ser crescida e de me sentir miúda de cada vez que a Teresa encontra a Terezinha, lhe pisca o olho, e lhe dá autorização para brincar aos grandes.

30 comentários:

Visconde de Vila do Conde disse...

Teresa, é curioso que hoje, precisamente hoje, você escreva este post. Porque, Teresa, hoje, precisamente hoje, foi o dia em que eu, esperando pacientemente pela próxima carga de água, me fiz ao caminho até ao café mais próximo, precisamente a dez minutos de caminho a pé. E nem calcula como foi bom...

tab@sco disse...

Também adoro chuva. Quando estou dentro de casa e ela cai lá fora com um barulhinho incessante e quando estou na rua (sempre mas sempre Chefa, sem chapéu de chuva ou umbrella). Só detesto uma coisa, é que depois de se andar à chuva sem o dito ou com ele, ela acaba por entrar no sapatito e essa sensação de pé molhado não gosto.
No entanto gosto de chuva porque sei que não vivo em Inglaterra e me esperam mais 364 dias dela. Isto também é importante que se diga!
Nisto Chefa, porque a idade te ataca a ti e a todos, pensei recordares um valente dia de chuva em que, juntamente com o nosso amigo Pedro S. (Viseu) e Miguelão, viemos da faculdade até tua casa sob chuva a saltar para o meio de todas as poças que encontrávamos a pés juntos. Lembras-te?

Anônimo disse...

eu gosto de um dia de chuva para cada 10 de Sol e é por causa da ppl, para ficar tudo verdinho

agora latas de atum sou gamado, até me lambi

tab@sco disse...

ppl? o que é isso?

Teresa disse...

Se lembro? Lembro tão bem como daquela vez, saídas de mais um cocktail de umas jornadas quaisquer, tu estavas enfiada numa enorme poça de chuva, tinhas água até aos joelhos, nós te avisámos que estavas dentro de uma poça de água chão e tu olhavas persistentemente para o céu, com um ar algo enevoado, e perguntavas - poça? aonde?

E não tenho problema com a água no sapato porque detesto, mas detesto, andar de sapatos quando chove. Sinto-me despida.

Teresa disse...

Visconde, é caso para se dizer que quem anda à chuva molha-se, mas isso importa pouco, não importa?

Teresa disse...

Z, também só gosto de chuva muito de vez em quando. Se insiste em não ir embora lembro-me logo dos 100 Anos de Solidão e dos anos seguidos a chover (sete?)

Marias disse...

O teu avô era de morrer a rir, lembro-me de contares que ao saber o preço a que fora comprada a carne, ou o peixe, a cada garfada dizia "mais 5$00"...

Teresa disse...

E devias tê-lo visto a flirtar com a Tia Cecília e a minha avó a ferver...

Anônimo disse...

ppl = produtividade primária líquida = fotossíntese - respiração

Sol: conto contigo amanhã Pá, já tá tudo regadinho e escoado e a roupa na máquina, até a minha Fátima telefonou

Anônimo disse...

(favas com entrecosto, antes que me desse um ataque de atum, que a língua gosta mas o pâncreas não, espero que seja este e não o baço que não sou nada voyeur)

Marias disse...

E uma vez nuns anos, na tua mãe, ao lanche, a minha mãe comentou "está tudo tão bom, hoje já nem janto". Vai ele muito alto "cheguem essa travessa a essa senhora que ela não vai jantar!". ainda hoje tem essa atravessada...

Teresa disse...

eheheheh... essa é mesmo do meu avô... sabes que uma vez o meu pai pediu-lhe dinheiro emprestado para a Central e ele emprestou mas o negócio foi assim - em metade do dinheiro não cobrou juros que era a parte da filha, da outra o meu pai tinha de pagar que ele não o conhecia de lado nenhum...

gaija do norte disse...

z, a minha sorte é que já jantei... qualquer apareço-te à porta! :)

eu também gosto muito de chuva e detesto estar em casa, e muito menos na cama, quando ela cai. de vez em quando tenho que me armar aos cágados e andar de guarda chuva, mas só porque tem mesmo que ser, e continuo a achar que pareço um cogumelo...

CGM disse...

Gostei tanto do post, às vezes gosto tanto de histórias antigas :)

E dos comentários também.

Teresa disse...

E eu gostei de te rever, mãe da malta. Mas, histórias antigas??? Estás a chamar-me antiga? Não, isto são só histórias com patine...

shark disse...

E como é que se brinca aos grandes?
:-)

CGM disse...

Shark: não é o que fazemos quase sempre?

Teresa: tenho andado caladinha, mas por aqui :)

CGM disse...

E Teresa, as histórias é que são antigas, também eu tenho algumas. Também o meu avô emprestou dinheiro ao meu pai, filho único, e que mesmo assim teve de lho pagar. E latas de conserva também me lembram o meu avô, que tinha um negócio, mesmo à antiga, mercearia, tasca e tudo, numa aldeia no alentejo. E manteiga a peso, marmelada a peso, ...

E já nem me lembrava das chaves das latas de conserva :)

Teresa disse...

olha, por exemplo, brincas aos médicos... é muito popular esta brincadeira entre os mais novos.

Teresa disse...

estava só a meter-me contigo, MdM...

Nas mercearias antigas gostava das bolachas vendidas ao quilo. Lembras-te das bolachas baunilha, que se abriam e lambia-se o recheio? Não têm nada a ver com as que agora por aí andam...

shark disse...

Mãe da Malta: bem colocada, a questão. :-)

Teresa: vês porque é que eu te disse algures para marcares a consulta? Eu bem te desafio prá paródia mas tu pareces o SNS e remetes-me prá lista de espera...
E depois eu fico de beicinho porque ninguém quer brincar com o meu sofisticado estetoscópio...
:-(

shark disse...

(Se calhar ainda peço ao Pai Natal uma doutora, daquelas insufláveis, para brincar comigo...)

Teresa disse...

Paródia? Mas tu queres que me mate a rir?
(bem, se visse a tal sofisticação do estetoscopio era mesmo capaz de acontecer isso...)

shark disse...

Ò chefa, tás a ver se me puxas pela língua?
(Esta foi profunda...)
:-)

CGM disse...

Lembro das bolachas Teresa.

E agora desculpem lá, que tenho de ir ali ao Helth Centre, experimentar os serviços de saude aqui da ilha.

(:p vou com o menor levar vacinas, só)

Teresa disse...

profunda não era a garganta?

MdM boa sorte! Parece que vais precisar...

Marias disse...

Pois é, também sou do tempo das chaves para abrir as latas de conservas...de atum e sardinhas.
Mas o leite engarrafado dava mais jeito, farto-me de abrir pacotes com tesoura, não atino com "aberturas fáceis".

O Santo disse...

um alicate de pontas era sempre a solução das latas. nunca, mas nunca tentar com a chave.
e lembro de uma saida nocturna por Manteigas em que os viveres consistiam em pao e latas de sardinhas. Nada para abrir a nao ser um machado. Evito os pormenores mas comemos as sardinhas, apesar do oleo... ok, sem pormenores.

sem-se-ver disse...

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