Obrigada!

Oiça, os ciganos têm má fama, mas somos boas pessoas.

Ontem a Clara fugiu de casa. Foi assim mesmo, fugiu. O clássico nas fugas. Fingiu que estava a dormir, encheu a cama de roupas e bonecos, tapou com o edredon, vestiu-se e saltou pela janela. Eu e a irmã demos pela falta dela quase à hora de almoço. Nem sabiamos quando teria desaparecido, mas a janela aberta não indicava nada de bom. A essa hora, e pelo que soubemos depois, já estava num posto da GNR, a quase vinte quilómetros de casa, à espera que a fossem buscar. Divertidíssima com os guardas, mas avisando que ia ficar de castigo... Aliás, foi das primeiras coisas que disse quando esteve comigo : desculpa mamã, fugi pela janela, gosto muito de ti e vou ficar de castigo... Pois vai. Pois está!

Explicou onde ia e para quê. Tudo lógico. Tudo assustadoramente lógico. Tudo a ensinar-me, mais uma vez, que a Clara é espantosamente melhor do que algum dia, nos meus sonhos mais optimistas, achei que pudesse ser. E sempre achei e esperei muito.

Agora que o susto já está mais domado, que muitas das imagens negras começam a desaparecer da minha cabeça, é hora de olhar para as coisas boas. É bom saber que a minha filha, que faz treze anos daqui a dois dias, é uma teenager típica que foge de casa e tudo. É hora de achar graça à roupa que escolheu para se vestir para a grande aventura. As galochas de chuva são o pormenor que todos os que a viram não deixam de lembrar... É hora de me enternecer com a mão cheia de amêndoas que meteu no bolso da saia, merenda para o caminho. É hora de confirmar que ela sabe o que quer e como o conseguir, que tem um sentido de orientação incrível e que não se assusta com nada, que tem capacidade para fazer planos que funcionam (e como funcionam) e para voltar a ouvir, de toda a gente que ontem a conheceu, que a Clara é fantástica.

E foi hora de ir agradecer a quem a salvou e a recolheu e ajudou a que viesse para casa sem uma beliscadura. Quem a viu a caminhar direita à autoestrada, quem saltou redes para mais depressa chegar até ela, quem com todos os cuidados se aproximou e foi-lhe falando para não a assustar e quem a seguir foi pedir ajuda.
Foi salva pelos ciganos. Os mesmos ciganos que eu estava farta de ver acampados ali bem junto à estrada por onde passo tanta vez e para quem nunca tinha olhado duas vezes.

Soube pela GNR que tinha sido encontrada por ciganos e que foram eles que pediram ajuda. Hoje a Clara, sem nunca hesitar no caminho, levou-nos até lá. Fui tentar dizer obrigada, mas não há obrigada que chegue numa altura destas. Fui com as miúdas, mas de mãos vazias, que agradece-se assim, com as mãos vazias para nos poderem segurar o coração.

Fizemos uma festa e um drama. Eles ficaram encantados quando a viram chegar, desta vez sem estar perdida. Rimos, chorámos, ouvi a história deles e eles a minha. As miúdas brincaram no chão com os miúdos, comparámos idades, tamanhos das crianças, deliciei-me com os olhos incrivelmente verdes e lindos de todas elas, a Clara pegou no bébé ao colo e acabou de lhe dar o leite, arrepiámo-nos os adultos com o que podia ter acontecido, disseram-me que quando a apanharam só se lembravam da Maddie e da Mari Luz. Ficaram muito mais descansados quando perceberam que ela tinha uma família que a queria e que não tinha sido abandonada na estrada, como a história que a cabrinha lhes vendeu...

Contaram-me como ontem passou por ela um senhor num jeep, como disse mais tarde que a tinha visto a andar pela estrada e achou estranho, mas nada fez, e de como eles estavam dispostos a ficar com ela se ninguém a quisesse. Quero-a, queremos todos, mesmo quando o estuporzinho foge pela janela do quarto para tentar apanhar um comboio e ir com destino bem definido.

Ficámos amigos, que os amigos aparecem-nos assim, e agora, depois do obrigada, é hora de trocar moradas e fazer por eles o que possa fazer, sem nunca conseguir pagar o que fizeram por nós. Cá em casa já se juntam brinquedos e roupas e livros. Nas casas dos amigos o pedido já foi feito também. Não paga nada, mas aquelas crianças todas, amigas das minhas filhas, vão ficar com sorrisos ainda mais rasgados. E, como eles ainda agora nos diziam, os ciganos são boa gente e bons amigos.
Nós já sabiamos, que o primeiro amigo da Clara foi o Joãozinho Cigano e agora, mais uma vez, foram os ciganos que lhe serviram de anjo da guarda.

Obrigada pelo imenso bem que nos fizeram e desculpem por a estupidez da vida nos levar a passar por tanta gente e tanto sítio sem olharmos duas vezes e por só percebermos como somos muitas vezes injustos e arrogantes e estúpidamente preconceituosos quando a bondade das gentes nos esfrega isso na cara.
Para minha e nossa vergonha.

10 comentários:

Anônimo disse...

Nos ciganos como em tudo o resto há de tudo como na botica. Eu conheci uns ciganos porreiros em Vila Franca de Xira e outros em Évora que vendiam cortes de fato, isto em 1966 e em 1972, respectivamente. Belo texto.
JCFrancisco

samuel disse...

Em cheio!

Abraço

O Pinoka disse...

Nem sei que te diga. Deve ter sido um cagaço e tanto. Não queria estar na tua pele. Mas ainda bem que tudo acabou da melhor maneira.
Quanto aos ciganos, mais uma prova que bom e mau há em todo o lado.
Bjs

Anônimo disse...

Este texto é uma delícia!

Anônimo disse...

ai, não sei se teria a sua fleuma com a clara...

Anônimo disse...

Gosto imenso dos ciganos. Sempre gostei, desde miúdo. Tive - e tenho, apesar de não os ver há muitos anos - amigos ciganos. E cada vez gosto mais. Gente que mantém princípios e filosofia de vida ancestrais. E quando me dizem que os ciganos não são de fiar, respondo sempre: de fiar não somos "nós" que mandamos os bebés para infantários e os velhos para asilos. Eles não.

cereja disse...

Que susto, Teresa!!! Mais uma vez sei aquilo que sentiste, porque o palerma do meu filho, tinha aí uns 3 anos e ainda falava trapalhão que começou a falar muito tarde, um dia abriu a porta e pôs-se a andar... Demos por isso pouco minutos depois mas já tinha dado para ele desaparecer em Lisboa. Isto passou-se pelas 3 da tarde e só o encontramos às 8 da noite. E tal como tu, fui a um bairro cigano aqui ao pé, mas dessa vez a coisa não acabou bem apesar da solidariedade - ao ver a foto só gritavam «Ai que lindo menino! A estas horas já o levaram!» portanto calculas o estado em que fiquei!
Olhando pra trás foi o maior susto da minha vida. Viemos a encontrá-lo numa esquadra de polícia onde um senhor o tinha levado por estranhar vê-lo sozinho numa estação de metro - onde aquele estuporzinho tinha decidido ir passear.

Bom, mas isto tudo para dizer que consigo vestir a tua pele e pensar no susto que sentiste e por outro lado a satisfação de veres a tua Clara como uma adolescente rebelde, como outra qualquer.

Anônimo disse...

Este texto chega a ser comovente.
Deixa-me congratular-te pela forma lúcida e sensata que demonstras neste e noutros textos que tens escrito sobre a vida.

saltapocinhas disse...

eu convivo com ciganos todos os dias e não tenho nenhuma razão de queixa da maioria deles, antes pelo contrário.

queixo-me muitas vezes é do racismo que existe, nem que seja pela discriminação positiva!

quanto ao teu susto, nem imagino o horror.

mas felizmente que acabou tudo em bem e a clara ainda ganhou mais uns amigos!

susana disse...

caramba, mulher, venho aqui ler-te de forma avulsa e descontinua, e saio sempre com o coração cheio.

a tua filha é um portento.