Nove horas da manhã. Segunda-feira. Treze anos atrás. Uma médica com cara de segunda-feira aproxima-se da minha cama e diz-me as palavras que nunca mais vou esquecer " a sua filha está bem, só estamos a fazer mais uns exames. É que ela tem um facies diferente e só duas pregas numa das mãos"...
Não foi preciso dizer mais nada para eu lhe fazer a pergunta fatal - é mongolóide?... assim, sem politicamente correctos nem anestesias.
A Clara tinha nascido há quatro horas, não a tinha tornado a ver, estava a acordar e o mundo caíu-me em cima.
Nove horas da manhã. Segunda-feira. Seis anos atrás. O telefone tocou e do outro lado ouço as palavras que nunca tinha esperado ouvir "Teresa, o pai morreu".
Detesto segundas-feiras. Não é por nada de especial, mas não me dou bem com elas.
Este dia de aniversário da Clara é sempre estranho para mim. A Clara nasceu, a minha primeira filha nasceu. A seguir, logo a seguir, a vida tenta dar-me um nó cego, que não fosse eu tão escorregadia e avessa a nós cegos que ainda estava a tentar desembrulhar-me.
Parece-me demasiado brutal dizer isto agora, que a Clara é a Clara e não a consigo imaginar de outra maneira, mas na altura foi uma porrada do caraças e que se perdoe a vulgaridade, mas não há outra maneira de dizer isto.
Chorei baba, chorei ranho, chorei por mim, por ela, por nós, chorei por tudo e chorei por nada. Nada disso agora me faz sentido, mas na altura chorei. Chorei muito. Olhava para ela e chorava. Pensava no que não poderia ser e chorava. E chorei até em frente a um maldito poster no corredor da maternidade a pensar que a minha filha, aquela coisa linda e cor de rosa, nunca se iria casar.
Casar, que raio de coisa para chorar. Logo eu que nunca tinha sequer sonhado em casar-me, que nunca o tinha querido fazer, e que chorava por pensar que a minha filha não se iria casar. Acho que só percebi o porquê disso quando fiquei grávida outra vez. É que quando me perguntavam se ia ter mais um filho eu respondia vou ter é netos.
Penso que foi a maior dor quando a Clara nasceu e não há como explicá-la a quem não a conhece. Queira-se ou não, um filho é a nossa continuidade, mesmo que não se olhe para ele assim. A Clara foi a primeira e pensava eu que seria a única, mas quando nasceu pareceu-me que alguém nos tinha roubado, a mim e a ela, o futuro.
Hoje é tudo diferente. Deixei de chorar há muito muito tempo. Deixei de chorar no dia em que, pouco depois de ela ter nascido, prometi a mim mesma que não iria deixar a vida tornar-me uma pessoa amarga e que por mais difícil que parecesse iria arranjar sempre uma razão para me rir. Como sempre fiz. Mesmo quando no liceu me estatelei numa poça de lama na frente do miúdo que tentava impressionar. Tinha quinze anos e, aos quinze anos, dar um salto elegante para mostrar como se é linda e acabar coberta de lama da cabeça aos pés é humilhação capaz de nos incapacitar para uma vida social decente. Eu resolvi rir. E nesse dia resolvi rir também. E tenho feito os possíveis para me ir rindo e tentar levar com humor o que poderia ser um drama. Só depende da nossa perspectiva e na minha não é drama desde há muito. Nem poderia ser, que a Clara também não é dada a martírios e leva a vida da melhor maneira.
Pode ser irresponsabilidade, mas divertimo-nos bastante e até ela se ri quando não consegue dizer Magda e lhe sai o margredra que nos leva às lágrimas.
Mas nestes dias de aniversário fico um bocadinho baralhada. Foi demasiado dois em um para se digerir assim depressa. Fico masoquista e lembro e relembro todos os pormenores. Vejo, como ainda agora fizemos, as fotografias dela quando nasceu, de como era tão pequenina, tão bonita, tão cor de rosa, tão boneca de porcelana. Vejo-lhe o peito sem a enorme cicatriz da operação ao coração, vejo-a e relembro o medo que sentia na altura, quando não sabia que um dia iria fazer treze anos, fugir de casa, andar de patins, escrever um diário, chatear toda a gente, ter um namorado, fazer duas piscinas debaixo de água e tudo o mais que ela faz e a faz a ela.
E hoje, mais uma vez, ouvimos a música da Clara. Foi feita nesta madrugada já de 28, há treze anos. Foi-lhe dada amanhã, pelo pai que a fez e a gravou para ela na primeira cassete que apanhou, e a Clara passou dias seguidos de hospital a ouvi-la. Ouviu-a no berçário, ouviu-a nos cuidados intensivos, ouviu-a na cama 13 e ouviu-a depois nas salas de espera para as consultas. Os phones eram maiores que a cabeça dela, mas para onde ela fosse iam atrás.
Fica aqui, mesmo sem autorização de quem a fez, que a Clara é esta música e esta música é a Clara.
A Clara tinha nascido há quatro horas, não a tinha tornado a ver, estava a acordar e o mundo caíu-me em cima.
Nove horas da manhã. Segunda-feira. Seis anos atrás. O telefone tocou e do outro lado ouço as palavras que nunca tinha esperado ouvir "Teresa, o pai morreu".
Detesto segundas-feiras. Não é por nada de especial, mas não me dou bem com elas.
Este dia de aniversário da Clara é sempre estranho para mim. A Clara nasceu, a minha primeira filha nasceu. A seguir, logo a seguir, a vida tenta dar-me um nó cego, que não fosse eu tão escorregadia e avessa a nós cegos que ainda estava a tentar desembrulhar-me.
Parece-me demasiado brutal dizer isto agora, que a Clara é a Clara e não a consigo imaginar de outra maneira, mas na altura foi uma porrada do caraças e que se perdoe a vulgaridade, mas não há outra maneira de dizer isto.
Chorei baba, chorei ranho, chorei por mim, por ela, por nós, chorei por tudo e chorei por nada. Nada disso agora me faz sentido, mas na altura chorei. Chorei muito. Olhava para ela e chorava. Pensava no que não poderia ser e chorava. E chorei até em frente a um maldito poster no corredor da maternidade a pensar que a minha filha, aquela coisa linda e cor de rosa, nunca se iria casar.
Casar, que raio de coisa para chorar. Logo eu que nunca tinha sequer sonhado em casar-me, que nunca o tinha querido fazer, e que chorava por pensar que a minha filha não se iria casar. Acho que só percebi o porquê disso quando fiquei grávida outra vez. É que quando me perguntavam se ia ter mais um filho eu respondia vou ter é netos.
Penso que foi a maior dor quando a Clara nasceu e não há como explicá-la a quem não a conhece. Queira-se ou não, um filho é a nossa continuidade, mesmo que não se olhe para ele assim. A Clara foi a primeira e pensava eu que seria a única, mas quando nasceu pareceu-me que alguém nos tinha roubado, a mim e a ela, o futuro.
Hoje é tudo diferente. Deixei de chorar há muito muito tempo. Deixei de chorar no dia em que, pouco depois de ela ter nascido, prometi a mim mesma que não iria deixar a vida tornar-me uma pessoa amarga e que por mais difícil que parecesse iria arranjar sempre uma razão para me rir. Como sempre fiz. Mesmo quando no liceu me estatelei numa poça de lama na frente do miúdo que tentava impressionar. Tinha quinze anos e, aos quinze anos, dar um salto elegante para mostrar como se é linda e acabar coberta de lama da cabeça aos pés é humilhação capaz de nos incapacitar para uma vida social decente. Eu resolvi rir. E nesse dia resolvi rir também. E tenho feito os possíveis para me ir rindo e tentar levar com humor o que poderia ser um drama. Só depende da nossa perspectiva e na minha não é drama desde há muito. Nem poderia ser, que a Clara também não é dada a martírios e leva a vida da melhor maneira.
Pode ser irresponsabilidade, mas divertimo-nos bastante e até ela se ri quando não consegue dizer Magda e lhe sai o margredra que nos leva às lágrimas.
Mas nestes dias de aniversário fico um bocadinho baralhada. Foi demasiado dois em um para se digerir assim depressa. Fico masoquista e lembro e relembro todos os pormenores. Vejo, como ainda agora fizemos, as fotografias dela quando nasceu, de como era tão pequenina, tão bonita, tão cor de rosa, tão boneca de porcelana. Vejo-lhe o peito sem a enorme cicatriz da operação ao coração, vejo-a e relembro o medo que sentia na altura, quando não sabia que um dia iria fazer treze anos, fugir de casa, andar de patins, escrever um diário, chatear toda a gente, ter um namorado, fazer duas piscinas debaixo de água e tudo o mais que ela faz e a faz a ela.
E hoje, mais uma vez, ouvimos a música da Clara. Foi feita nesta madrugada já de 28, há treze anos. Foi-lhe dada amanhã, pelo pai que a fez e a gravou para ela na primeira cassete que apanhou, e a Clara passou dias seguidos de hospital a ouvi-la. Ouviu-a no berçário, ouviu-a nos cuidados intensivos, ouviu-a na cama 13 e ouviu-a depois nas salas de espera para as consultas. Os phones eram maiores que a cabeça dela, mas para onde ela fosse iam atrás.
Fica aqui, mesmo sem autorização de quem a fez, que a Clara é esta música e esta música é a Clara.
Cor de Rosa
Côr de rosa, paixão
minha bela adormecida
Flôr de gente em botão
Novo amor da minha vida.
Bem me importa que brilho
Pôs o sol nas tuas côres,
Côr de rosa, paixão
Estou contigo onde fôres.
Cor de rosa, mulher
Ou promessa de um caminho
Devagar - devagar! - a aprender
Cada passo, cada espinho!!
Bem me importa se o Mundo
Te excluir dos escolhidos
Côr de rosa, mulher!,
Somos dois os excluidos...
9 comentários:
Clara, um grande beijinho para ti.
Teresa, um grande PARABÉNS para si. Por tudo.
Pai poeta, se ler isto, fica sabendo que este post me fez saltar uma lágrima. Por tudo.
Desculpem, mas quando gosto de alguém, sou assim ... choro.
Admiro-te Teresa.
Por este texto, magnífico, muito bem escrito, que nos faz pele de galinha. Pela tua fibra e coragem de lutar contra uma situação perante a qual conheço muita gente que desanima e baixa os braços. Pela alegria com que olhas a vida e os pontapés que ela muitas vezes nos dá. Mas sobretudo por teres sido capaz de partilhar connosco estas emoções tão grandes.
Eu, que tenho uma razoável auto-estima e me considero corajosa, confesso que não tinha sido capaz.
Um abraço.
Talvez por também ter duas filhas fiquei arrepiado com o texto e mais ainda com as circuntâncias. Parabéns Teresa, por tudo. Pelo texto e pela coragem que não deve ser nada fácil de arranjar e não se compra nos supermercados da construção sentimental...
JCFrancisco
Pensei bastante antes de me decidir a deixar aqui o meu comentário. Por diversas razões que não são chamadas para este espaço público e que compreenderás.
E decidi que o único comentário que tenho a fazer é:
Parabéns à Clara (atrasados, mas sinceros);
parabéns à mãe da Clara (por saber ser mãe dela)
parabéns ao pai da Clara (porque por muito "bizarro" que seja, sempre soube ser pai).
PS: ai, ai o q eu vou sofrer por causa deste adjectivo de q me lembrei...
Após ler uma demonstração de um amor puro, que me fez sorrir e trouxe tranquilidade e alegria ao meu coração, apenas obrigado Teresa por partilhares connosco a existência de uma pessoa maravilhosa que é a Clara.
Clara desculpa o atraso: Parabéns!
Teresa, mais que a tua coragem, o teu amor incondicional, sinónimo de que todos podemos ser sempre melhores.
Beijos
quando se tem assim tanta coisa à flor da pele...
Bom dia Teresa, já não é a primeira vez que venho ao Seu blog, mas desta vez não resisto a deixar um comentário...muito longe de saber o que a motiva ou quem é...admiro-a e ainda não entendi o porquê da Cabra de Serviço?! Quando tão só e apenas, do que li, me parece um Mulher, que nas alturas em que a vida lhe foi Cabra...avançou, lutou e Amou...
Um beijinho de Parabéns à Clara e à Teresa, pelas pessoas que são...diferenças?!...há muitos tons de cor-de-rosa...mas são Todos Cor-de-Rosa!
Até breve ;)
Parabéns para a Clara e para a mãe, que demonstra tanta força e coragem. Texto inspirador! Felicidades!
vim aqui à procura de outra coisa que li aqui há tempos e olha, lá me comoveste tu até às lágrimas.
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