Fogo nas ventas

Estou, há vários minutos, a olhar para uma fotografia. Andei em arrumações, caiu do meio de uma pilha de papéis e encostei-a a uns livros, na prateleira mesmo na minha frente.

Deve ter sido tirada há uns quatro anos. É a minha filha mais nova montada no Dragão.
O Dragão era o poney, com tamanho de cavalo, que viveu aqui connosco. Foi comprado a uns ciganos, um dia que o meu namorado ia levar as crianças à escola e o viu a trotar atrás de uma carroça.

O Kartsen era alemão, do Norte, e sempre tinha vivido no meio de cavalos. O pai criava-os, o tio foi campeão olímpico de salto, orgulho da família, a ex-mulher dava aulas de equitação, os filhos entravam em tudo o que era concurso, e ele treinava os cavalos. O último que tinha tido, com que tinha entrado em concursos, era o Dick. Uma coisa enorme e que deixava sempre uns sorrisos malíciosos quando era anunciado o próximo concorrente, Mr. Karsten S.... and his big Dick.

Tinha um olho clínico, e assim que viu o Dragão achou que era um animal com raça. O negócio foi feito numa curva do caminho, eu fui apanhada de surpresa quando cheguei a casa, e as minhas filhas tiveram o que eu sempre sonhei quando era miúda como elas e nunca tive - um cavalo.
Já vinha crismado, Dragão, e depressa percebemos porquê. Tinha fogo nas ventas. A maior parte do tempo que viveu connosco andou por aqui à solta e se ladrasse parecia um dos cães. De manhã levava-nos até ao portão e à tarde, assim que ouvia o carro, ficava à nossa espera. Chegou a entrar na sala algumas vezes - entrava por uma das portas, dava uma voltinha e tornava a sair pela outra. Quando estava de mau humor alapava atrás do meu carro e, por mais atrasada que estivesse para levar as crianças à escola, tinha de negociar com ele.
Um dia troquei-lhe as voltas mas ele, num galope desvairado, atravessou-se-me pela frente com a corda da roupa pendurada ao pescoço, os lençois a esvoaçarem ao vento e a mulher a dias frenética atrás dele. Não preciso de dizer que, ainda hoje, as miúdas se matam a rir quando se lembram disto.

Aqui, na foto, está a "xica-preta" (a outra é a "xica-clara"), com uns seis anos, a montá-lo em pêlo. Está com umas jeans claras, uma t-shirt branca, as botas que já não consigo lembrar quais eram, tem as costas direitas à amazona e a mão esquerda a afagar-lhe o pescoço. Estavam na relva, aqui em frente.

( foto a pedido da babysitter...)


Ao olhar para a fotografia lembrei-me de como fui feliz nessa altura. Sempre. Sem momentos maus ou horas amargas.


Fui feliz. Muito. Acho que tento não me lembrar disso, mas de vez em quando aparece uma coisa destas que me obriga a pensar.
Foi a primeira vez na minha vida que me senti em casa e que pensei que a seguir a um hoje podia haver um amanhã.
Viviamos aqui, os quatro. Eu, as miúdas e o Karsten. Não tinhamos uma vida fácil por aí além, mas todos os dias acordava a achar que valia a pena, o que para mim era absolutamente novo. Tinha vindo de dias muito negros, muito tristes, de vidas muito complicadas e com pessoas muito difíceis, e num golpe enorme de sorte tinha não só paz como também dias felizes.

Olho para a fotografia e lembro-me dele a treinar o poney aqui em frente. A galopar relvado fora, a virá-lo no último momento, a aguentá-lo no meio dos pinotes e das fintas de barriga, os dois esbaforidos, os dois a quererem mostrar que mandavam. Os olhos azuis do homem, o olho azul e o olho verde do bicho, a lançarem chispas. Eu de coração aos saltos, que o meu homem ainda se matava, mas a rebentar de alegria, que o homem lindo, o poney branco e a relva verde estavam ali para mim. Quando acabavam já tinha uma cerveja para cada um, que homens e cavalos levam-se assim, com mimos.

Fui feliz. Muito. E durante muito tempo, o que também foi novo, que sempre tinha achado que a felicidade era um estado de alma que só podia durar poucos instantes.

Na primeira vez que montei o Dragão levava a lição toda ensinada. Segurar bem as rédeas que quem mandava era eu, obrigá-lo a ir para onde eu quisesse. Correu bem durante um tempo, e ainda dei umas voltas à quinta. O problema foi quando achei que ele ia começar a galopar. Estávamos a passar pelas favas e ele olhou duas vezes. Quis cortar para lá e segurei-o. Insistiu e continuei a segurá-lo. Quando senti os músculos retesados e uma enorme vontade de comer favas, entrei em pânico. Atirei-me lá de cima, cai sem me magoar muito, e o Dragão largou a galopar campo fora. Não sei se o queria fazer, mas saltei antes que o fizesse. Pelo sim, pelo não.

Com o Karsten, o meu namorado alemão, com quem fui feliz, que era lindo de morrer, um homem bom, que vivia apaixonado por mim e eu por ele, fiz exactamente a mesma coisa...

Às vezes, em momentos como este, tenho muitas saudades do Dragão.

13 comentários:

Ângela disse...

Como em tudo: só damos valor ao que temos/tivemos depois de o perdermos...
Por isso é que é importante saber apreciar o hoje.
Saudades qb também ajudam!
Bjs

Anônimo disse...

Pois é Teresa, assim não tens tempo para acertar a escrita dos Emails. Mas está um excelente texto. Só é pena a desproporção entre o correio daqui e o do Email. DEvias tentar um equilíbrio, tájavér?
JCFrancisco

Anônimo disse...

teresa,embora a parte das saudades e de ter sido feliz não seja o melhor.Estou farta de rir,a imaginar a teresa a montar o Dragão e saltar muito mas muito rapido!Um panico!
So um pormenor na foto so vejo o Dragão!!

Anônimo disse...

Belo naco de prosa. Mainada.

Anônimo disse...

Aconteceu-me uma situação idêntica: ainda um pouco verde nas lides equestres, montei um cavalo árabe, rápido e vivo como é apanágio da raça. Quando o animal começou a galope, atirei-me para o chão antecipando o tombo. Valeu-me a professora que me convenceu a voltar a montá-lo, de imediato, como é prática corrente na equitação. Sacudindo a serradura do picadeiro profusamente espalhada pela roupa e cabelo, entreguei-me ao holocausto. Foi, então, que pude saborear o prazer do galope, e confirmar o que todos me diziam: que era o andamento que menos cansava e mais prazer dava ao cavaleiro e à montada.

Acho que há uma similitude com o que acontece com as coisas da vida, em geral : saltamos fora porque temos receio da queda. Mas, ao fazê-lo, não desperdiçamos, também, excelentes oportunidades de sermos felizes?

saltapocinhas disse...

eu cá acho que não devias ter desmontado assim...

Anônimo disse...

Já perdi a conta.

Exactamente quantos namorados seus é que as suas filhas já conheceram?

sem-se-ver disse...

(nem li o post)

(lá te enfiei numa corrente...

http://sem-se-ver.blogspot.com/2008/03/se-eu-fosse-um-elo-de-uma-cadeia.html

sorry!

:-)

(esta é secosa... faz só te tiveres paciência :-)

Anônimo disse...

É mais fácil ser-se cusco/a com a cara tapada...

Leão da Lezíria disse...

Eu acho que você ainda é feliz. Acho mesmo.

cristina rocha disse...

Mifá, concordo plenamente quando dizes "saltamos fora porque temos receio da queda. Mas, ao fazê-lo, não desperdiçamos, também, excelentes oportunidades de sermos felizes?".

Infelizmente e por experiência própria as coisas na realidade não são assim tão fáceis. especialmente e tal como a Teresa bem afirmou "Tinha vindo de dias muito negros, muito tristes, de vidas muito complicadas e com pessoas muito difíceis, e num golpe enorme de sorte tinha não só paz como também dias felizes.", quando se tem por passado tais situações é mais uma questão de instinto de sobrevivência.

E nem sempre é fácil esquecer tudo e recomeçar do zero. Se assim fosse todas as pessoas eram bem mais felizes e bem menos complicadas e o mundo seria com certeza muito, mas mesmo muito melhor.

Teresa, texto magnífico, obrigado pela partilha de um pedaço de ti que em nada é banal.

beijos

cereja disse...

E fizeste-nos reviver contigo essas saudades.
Lindo post.

Teresa disse...

...mas a saudade é uma coisa boa,não é?

angela,
nem sempre é assim, mas essa é a regra.

JC,
renasci.

maluca,
já tens a foto, não te queixes.
Quanto a ter-me atirado para o chão entes que fosse atirada,cá te espero...

mifá,
um puro sangue é outra loiça, até o galope deve ser diferente e a queda é bem maior.

pocinhas,
eu também acho.

shark,
words...

leão,
entendemo-nos!

Cristina,
Acertaste na mouche, mas tivemos os mesmos ventos a embalar-nos.

Emiéle,
"a saudade dói como um barco que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais"

sem-se-ver,
vais pagar caro...

anónimo,
está preocupado(a)? quer uma máquina de calcular ou prefere uma ajuda para contar pelos dedos?