Fui viver sozinha muito miúda. Tinha 17 anos, no liceu lá do sítio não havia 12º ano, e tive de ir para Coimbra, ocupar um apartamento tamanho família que os meus pais tinham vazio há anos.
Saí de casa pouco tempo depois de terem comprado a primeira televisão a cores e um ano depois de nos termos mudado para a casa que até aí era a dos meus avós.
A vida mudava e eu ia-me embora. Estava por minha conta, a viver numa cidade onde nunca tinha vivido e com uma casa enorme só para mim. A única regra que tinha, e o meu pai nisso foi muito preciso, era que lá não entrava um rapaz nem que fosse para pedir um lápis….. O único que não entrou, que eu queria espaço para negociar e parva não sou, foi o meu namorado da altura.Todas as noites ele apanhava boleia para ir ter comigo e todas as noites ficávamos nas escadas do prédio, para desespero dele, que os amigos e os irmãos tinham livre trânsito. Mas quando um dia os meus pais chegaram de surpresa e eu tinha dez gajos na sala menos ele, o meu pai sentou-se à conversa e nem pestanejou e, no ano seguinte, renegociámos o acordo. Fiquei a ganhar, como já sabia que ia acontecer.
Na primeira noite que passei sozinha em toda a minha vida tive por compannhia o Rudolf Nureyev e a Margot Fontayn a dançarem o Lago dos Cisnes. Lembro-me que era no canal 2, ou qualquer outra coisa que se chamasse na altura, e chorei durante todo o tempo. Não foi por causa do bailado, mas por causa das batatas miúdas.
"Batatas miúdas" é um acompanhamento típico da casa da minha mãe. Faz-se um refogado como se fosse para arroz, junta-se água a olho, colorau e salsa, e cortam-se batatas "miúdas" lá para dentro. O truque é não lavar nunca as batatas depois de cortadas, que a água rouba-lhes o amido e estraga-se o molho.
Naquela primeira noite de autonomia pensei que nunca mais na vida iria comer batatas miúdas e foi por elas que chorei. A partir daí iria passar a ser "visita" na casa que ainda era a minha, só iria lá para fins de semana, e nesses dias não se faziam, e não se fazem, batatas miúdas em casa da minha mãe.
Na altura só sabia fritar ovos e pouco mais. Ou nem isso, mas fica sempre bem dizer que se sabe alguma coisinha. Quando saí de casa ainda tinhamos duas empregadas, ou criadas, como se dizia e não era por falta de carinho ou respeito, e nunca tinha sido preciso passar tempo na cozinha. Lembro-me de a minha mãe refilar por as filhas não saberem fazer “nada”, que ela vivia preocupada com o facto de as filhas não terem uma educação de meninas, e de o meu pai lhe responder que se fossemos inteligentes saberiamos fazer tudo. Só tinham de nos ensinar a pensar, o resto era connosco. Deve ser por isso que me lembro dele a ensinar-me matemática, e eu devia ter uns 3 anos, e não me lembro me terem ensinado a fazer arroz.
Acho que aprendemos a pensar. Ou gosto de pensar que aprendemos. Pelo menos, já sei fazer batatas miúdas. E sei fazer saias (mesmo que sejam de pregas, que dão um trabalho do caraças com os cálculos, porque se acham que é fácil tentem fazer; ou de godez, que precisam de ser cortadas certinhas; ou com bolsos metidos, que são lixados de pensar) e calças e vestidos e o mais que seja. E sei montar móveis, bordar arraiolos, arranjar aspiradores, fazer cueiros, mudar a bateria do carro, desentupir fossas, trocar vidros, pôr azulejos, fazer pudim abade priscos , andar de patins, falar francês e plantar alfaces. Também sei podar árvores, fazer compotas, dançar até de manhã, desenrascar um bilhete de avião quando tudo está esgotado, fazer uns negócios muito bons, descobrir a melhor maneira de poupar uns tostões legais nos impostos e resolver equações simples, que as mais complicadas já se me falham. Também sei, acho, criar duas filhas, que elas estão aí grandes e bonitas. E sei fazer mais umas coisinhas, mas isso agora não interessa nada, como dizia a outra. Só não sei tocar piano, que apesar de ter andado a aprender nunca tive queda para essa música.
Sei muito, e sei hoje que tenho saudades de casa. Tenho saudades da minha mãe e tenho saudades da enorme chatice que é ir passar a Páscoa na casa dela.
Por lá, esta é a altura das procissões. A minha tarefa, se lá estivesse, seria ficar em casa, acender as velas nas varandas e janelas e pôr um ar composto quando estivessem a passar. Iria ficar a ver na varanda, a Clara iria estar comigo e toda a gente lhe diria adeus quando passasse. A “gorda” não estaria connosco, que de uma maneira ou de outra arranjaria forma de estar amuada num canto qualquer. O padre rezaria a avé maria cheirassa e nós iriamos rir porque todos os anos a cheirassa não podia falhar.
Quando finalmente o padre entrava todos se perfilavam para beijar a cruz e a casa era benzida para o novo ano que começava, sem sonharem que mais um ritual pagão tinha sido cumprido. Eu nem respirava, escondida atrás de um sofá, que isso de andar a dar beijos em cima do cuspo dos outros não há fé que justifique e a minha já era pouca.
Durante o resto da tarde ficava-se em casa, que chegavam os afilhados para receber o folar. Esta foi sempre a parte pior. Os meus irmãos têm dezenas de afilhados – a mim deviam ter medo de pedir para ser madrinha, que sempre devo ter tido um arzinho de não ir com essas coisas– e eu tinha um único. Eles raspavam-se na Páscoa, eu ficava para aturar os afilhados deles.
O meu é que nunca apareceu por lá. Não percebo porquê, que a esse teria todo o gosto de ver na sala. É lindo, vermelho e enorme. Tem uma placa de lado a dizer Maria Teresa e, que eu saiba, é o único de todos os afilhados que nunca pediu folar. Está bem que é um carro de bombeiros, mas é o mais bonito autotanque que já foi fabricado, o melhor de todos que algum dia apagou fogos, ou não fosse meu afilhado e levasse o meu nome no casco.
Tenho saudades de casa da minha mãe e quero que, um dia, as minhas filhas tenham saudades da casa da mãe delas.
6 comentários:
Pequeno lapso (serra da estrala) não altera em nada o valor do texto. Belíssimo, muito bem escrito, a meio entre a poesia e a antropologia. Parabéns Teresa. Mereces mais e melhores leitores.
JCFrancisco
Li até ao fim. E, de tão bom, o melhor mesmo é não fazer grande discurso.
Isto é um post ou um capítulo?
Eu pergunto: isto é um comentário ou uma provocação?... Não há regras e ainda bem para o tamanho dos «posts». A Teresa sabe bem a diferença porque tal como o poeta Carlos Garcia de Castro ela sabe que «todos se lembram mas ninguém recorda». E ela recorda...
Eu não saberia descrever melhor o que sinto e que é igual ao que está neste texto... Só mudam as personagens e a geografia!
A blogosfera tem o doce condão de tornar público o tesouro que tantos guardam dentro de si - o tesouro de fazer das palavras águas para o leitor navegar...
Beijinho grande!
o anonimo das 11 horas sou eu JCFrancisco; saiu assim porqeu sou um «sem-abrigo» informático
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