Carnaval

Está de chuva. Deve ser o S.Pedro que não gosta do carnavaladas. Não está sozinho nestes gostos, que o presidente de todos nós viu a fúria do povo não por ter tentado fechar urgências, mas por nos ter tentado tirar o Carnaval e um certo Papa, que de Inocêncio devia ter pouco, já que era o segundo, bem que ameaçou com excomunhões, mas de nada lhes valeu, que os foliões são muitos e o Carnaval são só três dias.
Com isto tudo, acabei por me lembrar dos romanos, que foram eles que começaram a dar ideias para este acabar com a alegria do povo. Lei romana era Senatusconsultus e foi de um deles que me lembrei. Estudei-o há muitos anos, com um padre pequenino chamado Sebastião Cruz. Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra dava aulas de Direito Romano. Era o professor preferido dos caloiros acabados de aterrar no meio dos Mestres. Todos conheciamos a história que se sussurrava entre dentes. Os anos e anos de pesquisas e estudos para o segundo volume do Direito Romano estavam perdidos. Alguém lhe teria roubado as fichas com as anotações e esperava pela morte dele para se armar em autor do que não era seu. Era como se lhe tivessem roubado um filho e a tragédia dava-lhe a humanidade, que até poderia já ter antes, de que nós usávamos e abusávamos, que a pouca idade faz-nos ainda mais imbecis.
Mas isto é fugir ao senatus e este, de que falo, é o único de que todos nos lembramos, vá-se lá saber porquê. Lei é lei, principalmente se é romana, mas nem sempre nos alembra. Esta sim, ficou-nos na ponta da língua por sabedoria do Mestre, que a usava como engodo subversivo, para irmos atrás das outras. Senatusconsultus de Bacchanalibus. Com um nome destes não havia memória que falhasse. Todos sabiamos de cor, e sabemos, que há coisas que ficam, que proibia as festas em honra do deus Baco, porque acabavam sempre em orgias. A pena? A morte, pois claro, que os romanos não brincavam em serviço e isso de justificar a faltinha ou rezar dois padre nossos está-se mesmo a ver que só podia ser piada. Estávamos no ano 186 a.c., mas eles que lá viviam desconheciam-no por completo, que contar para trás tem destas coisas.
O Baco de todos os vícios, ou Dionísio, como os gregos lhe chamavam, tem uma história gira. O pai, o deus dos deuses, big boss do Olímpo, embeiçou-se por uma sacerdotisa que até talvez fosse divinal, mas não era divina. Divina era a mulher dele, a legítima, a lá de casa, mas o estatuto de deusa não lhe tinha tirado as entranhas e, como as de qualquer ela nestas circunstâncias, andavam roídas de ciúmes. Quando a deusa soube que a outra, que estas são sempre as outras, estava grávida do deus dela, armou a ratoeira. Parece que o marido, Zeus ou Júpiter, como quiserem chamar-lhe, sabia o que tinha em casa e percebeu a marosca, mas já tinha prometido à amada que iria ter com ela, vestido com as suas melhores vestes, e não podia voltar atrás, pois palavra de deus é assim, não tem volta. O peso da divindade, mais o peso das bijuterias sagradas e seguramente que o peso da culpa também, esmagaram a futura mãe e lá se iria a semente do carnaval se o pai não tivesse, com toda a sabedoria divina, inventado as mães de aluguer. Cortou-lhe a barriga, tirou o feto, abriu a coxa direita e lá o meteu. Carregou-o até ao fim da gestação e nasceu Dionísio, o tal também Baco, meio deus meio homem. O problema é que o Olimpo era um condomínio fechado com um regulamento muito exigente e não permitiam a entrada a fumadores, animais ou homens. Dionísio recebeu guia de marcha e teve de se fazer à vida. Não consta que tivesse arranjado as melhores companhias, mas filhos, de deuses ou não, são sempre cabeças tontas. Em vez de concorrer a um empregozinho no Estado com reforma garantida, andou aos caídos à procura da imortalidade que não tinha.
Como quem muito procura sempre alcança, descobriu a passagem para o paraíso com as uvas e o vinho e conseguiu a ilusão do divino que há tanto procurava. Reza a lenda que foi desde esta altura que os homens descobriram que com o vinho tinham asas e talvez, quem sabe, o "Côro" dionisíaco tivesse começado com um Heaven, I'm in Heaven....

"Dionísio sempre foi considerado pelos gregos como um deus subversivo, pois personificava a desobediência à ordem e à medida, a vida do instinto, a liberdade e o prazer sem limites, a inversão dos valores sociais."
"As pessoas, que compunham o coro de Dionísio, sentiam-se transformadas pela embriaguez e punham de lado a máscara social, manifestando sua verdadeira personalidade. No estado dionisíaco, nos momentos de excitação orgíaca, esquecido de seu status, o homem sentia-se membro de uma comunidade universal em que se quebravam as barreiras de classes. Assim, o homem divinizava-se, o escravo emancipava-se, a crueldade tornava-se prazer, o grotesco misturava-se ao sublime. Este espírito dionisíaco, vivido também nas saturnálias romanas, persiste em todas as manifestações carnavalescas da cultura ocidental."

Aproveite-se então o Carnaval, que se viu grego para cá chegar, porque nunca se sabe quando é que algum regulamentozeco faz mais que Santos, Papas, Presidentes e Senatusconsultus e acaba mesmo com ele.

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