A passar a limpo*

Deve ser este o sítio certo para escrever este post.

Estou sentada na areia. Ainda não é fim de tarde, mas o Sol já não queima muito. Mesmo por trás de mim as arribas, cobertas de verde, cercam esta praia pequena onde, num Domingo de Julho, se contam quase pelos dedos das mãos as pessoas que por aqui andam. No meu lado direito, escondidos no meio das árvores, numa pequena elevação das rochas onde o mar quase bate e cobertos pelo arvoredo, uns toldos marroquinos fazem um bar preguiçante em que um pequeno anúncio da próxima Festa da Lua Cheia me faz ter quase a certeza de que cá voltarei. Na minha frente, o Oceano. A Xica e um amigo apanham caranguejos nas rochas da maré baixa e, para além do embalo do som da rebentação, não se ouve absolutamente mais nada. Ao meu lado, a Clara mima os meus gestos e no caderno dela escreve uma qualquer regra número qualquer coisa mas que só pode ser importante, como todas as regras que agora resolveu escrever no diário cor de rosa. Ali, não longe, encostados a um rochedo, um pai de óculos sem aros e ar simpático faz de um pequeno pau uma fada enquanto conta uma história à filha de fato de banho de folhinhos. Têm um ar sereno, uma toalha estendida e uma cesta de verga com uma bóia dentro. Lá em cima, sentado num dos puffs por baixo do toldo bege e castanho, um tipo de cabelo louro entrançado, tronco nu bronzeado e ar de viajante vai-me olhando enquanto escrevo e eu vou fingindo que não o vejo.

Escrevo com um toco de um lápis de carvão num Moleskine de folhas quase gastas e tudo à minha volta me parece perfeito. O mundo está lá atrás, depois da estrada de terra e para além das casas impecavelmente iguais, porque aqui estamos num pedaço de Paraíso. O tempo não parou, que o tempo nunca pára, mas anda tão devagar que conseguimos ver-nos a viver. A viver livres.

Volto, num instante, ao pensamento que acordou comigo. Tudo aqui me leva lá, a essa interrogação a que na altura não soube responder mas que me parece absurda agora. Será, queria saber eu, que ainda somos livres? Será que não teremos perdido a noção de liberdade? Será que sabemos, nas nossas vidas, que podemos ser senhores dos nossos destinos, que podemos decidir o que queremos e o que fazemos, que podemos sentarmo-nos à beira-mar a olhar para o infinito e a pensar que é nosso?

Durante séculos a busca da liberdade perdida ou nunca vivida fez erguer espadas, destruir bastilhas, enfunar velas de barcos. Foi a busca da liberdade que arrumou malas de cartão, armou cidades, destruiu príncipes. Pela liberdade se gritou no Ipiranga, se queimaram barcos de chá e soutiens, se escreveram leis, se deitou um muro abaixo. Homens e mulheres escolheram morrer a viver prisioneiros, os hinos cantam-na, os homens louvam-na. Por ela Lutero cismou com um Papa, Ghandi morreu, Joana D’Arc lutou. De liberdade trata o sétimo dia da Criação e os primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos dos Homens. Pela liberdade saíram por aqui cravos à rua, choveu em Santiago e os nossos hermanos completavam, em voz baixa, o Arriba Franco! com o esperançoso Más alto que Carrero Blanco.

Mas hoje, que a liberdade já passou por aqui, que a liberdade já passou por quase todo o lado, damos-lhe tanta importância como a um presente já desembrulhado e visto em noite de Natal. Já temos, vai para o monte do que não tem valor. Ou, talvez, não queiramos olhá-la de frente, tentar encaixá-la nas prateleiras arrumadas das nossas vidinhas, questionar a sua existência no nosso rame rame diário. Talvez nos custe pensar até onde somos, verdadeiramente, livres.

Por aqui, neste blog, há poucos dias, discutiram-se prisões e penas. Todos nos indignámos com a justeza da lei que condena um assassino a uns meros vinte anos de vida atrás das grades. Nenhum de nós, nem um único, se referiu a uma pena de cadeia como uma pena privativa da liberdade, uma pena privativa do tal bem supremo, do valor pelo qual tanto sangue foi derramado, a Liberdade. Sugeriram-se modelos de penas, trabalho obrigatório, cadeias empresas, mas ninguém referiu o bem que até há pouco era mais valioso que a própria vida.

Eu percebo. As nossas vidas, cá fora, já pouco diferem das vidas deles lá dentro. E não foram as cadeias que melhoraram, mas as nossas vidas que se tornaram prisões e já poucas diferenças encontramos. Estamos tão prisioneiros como eles, estamos tão privados da liberdade como um assassino condenado. E é essa, só pode ser essa, a razão para nós, presos em vidas pequenas, contratos grandes, empregos tristes, cadilhos, agendas, rotinas, patrões, casas gaiolas, horizontes limitados, deixarmos de sentir que a Liberdade é o bem supremo e que a sua privação deveria ser a pior pena, pior que a pena de morte, e pedirmos mais e mais castigos para aqueles que estão fechados para cumprirem uma pena mas que acabam por ter vidas iguaizinhas às nossas. Para alguns, até melhores.

Não. Não é a lei que tem de mudar, não são as cadeias que têm de ser reformadas, não são eles que têm de ser açoitados, somos nós que temos de voltar a perceber o que significa ser livre para podermos perceber o quão horrível deve ser o perder a liberdade. As vidas que têm de mudar não são as que estão lá dentro, mas as que estão cá fora. Somos nós que temos de acordar, todos nós, todos os que temos direito à liberdade e não a sentimos, não a gritamos, não a usamos até termos um arrepio num quase fim de tarde, numa praia, com o imenso mar na frente.

11 comentários:

Mente Quase Perigosa disse...

Pequenos momentos de perfeição esses...

sem-se-ver disse...

vai parecer que me estou a chegar á frente ou a pôr em bicos de pés, mas, tereza, eu nao participei daquela 'discussao'. estava bom tempo, nao me apeteciam asuntos serios, comecei a ficar enervada com o que via escrito por aqui. pq parecia, parecia mesmo, que toda a gente estava a esquecer exactamente isto que acabaste de defender: que a pior pena é a da perda da liberdade.

parece-me que temos um codigo penal justo. 25 anos de cadeia como pena máxima, salvo erro ou omissao, surge-me como uma pena pesadissima e justa para os casos mais hediondos. falo de pena aplicada Estado, nao da vontade que possamos pessoalmente ter de matar certos psicopatas pelas nossas proprias maos - e irmos, com toda a justiça, para a cadeia por o termos feito.

o que mais incomoda e indigna nao é o tamanho das penas ser curto: é a maior parte das vezes eles sairem bem mais cedo com a cobertura legal ou de liberdades condicionais ou de comutaçoes de pena ou de provas da sua reinserçao, que, quantas vezes, se vem a demonstrar (casos obvios de violadores ou de pedofilos) nao corresponde á verdade.

isso, e os tribunais nao funcionarem como devem, quantas vezes, logo na apreciaçao dos casos que lhes surgem.

mas, enfim, agradeço-te este momento de civilidade e de civilização que tantas vezes verificamos que, por razoes de revolta ou motivaçoes de vingança, as pessoas perdem de vista.

(eh pá, 'tava assim tao bom e deserto?? ah maldito santo!!)

Visconde de Vila do Conde disse...

Tereza, com enorme pena minha não tenho podido dar o meu contributo nesta série de temas sérios que têm surgido aqui pelo Cabra. A questão da justiça, da aplicação da justiça, toca-nos a todos, de uma forma ou de outra. Ora nos exasperamos porque os processos são demorados, ora desculpamos a demora na aplicação da lei, afinal o recurso a instâncias superiores é uma segurança que temos, sabe-se lá quando não seremos nós a usufruir. Eu acho que a palicação d alei, mais que cega, tem que ser fria. Se a mim me parece quase legítimo qua alguém roube porque está desempregado e precisa de comer, tenho que aceitar que a visão do comerciante que se levantou cedo para trabalhar e que gere o seu pequeno comércio nos limites da rentabilidade possa não ser tão tolerante como eu.

O seu post leva-nos numa outra direcção, essa sim, muito mais aliciante e com muito mais possibilidades de discussão. E a grande questão é saber se ainda valorizamos a liberdade, se ainda lhe sentimos o sabor ou se, por outro lado, a damos como adquirida, algo que nem colocamos em causa, algo como respirar, tão vital que nem concebemos que não nos seja dada. E o pior, Tereza, será quando começarmos a pensar que a liberdade plena, afinal, não é assim tão aliciante, que concebemos prescindir de liberdade em troca de outros conceitos (a segurança, a "qualidade de vida"...).

calamity jane disse...

E o que eu gostei deste título, da etiqueta e de todo o conceito da escrita de uma "posta à mão", título de uma das minhas. porque acredito sinceramente que não é, não pode ser a mesma coisa. Quanto à posta propriamente dita, I'll be back...

Teresa disse...

Mente, os momentos de perfeição nunca são pequenos. Enchem-nos a alma.

shark disse...

Chefa, pela primeira vez vou utilizar a minha liberdade de postar para me demarcar por completo de uma posição tua.

Teresa disse...

(era outra, não a do Santo. Um dia levo-te lá...)

Ontem vi um filme que há muito aguardava ser visto. O livro continua na lista dos meus livros preferidos desde que, ainda garota, lhe pus a vista em cima. Chama-se Cold Blood, Truman Capote, claro.
Lembrei-me deste post durante o julgamento dos dois assassinos. A acusação pedia a pena de morte, e conseguiu, argumentando que a alternativa seria uma pena de 25 anos a perpétua e nessa, por lei, sete anos depois seria possível pedirem liberdade condicional. Penso que isto não será um erro técnico do argumentista e que a lei, no Kansas, é ou era mesmo assim.
Concordo contigo quando dizes que a nossa lei é demasiado permissiva no que respeita ao cumprimento das penas possibilitando que a maior parte dos condenados cumpra uma pena pequena e ainda me indigna mais o saber que a maior parte das vezes são razões economicistas que estão por detrás das decisões - um preso fica caro ao Estado. Sim, a alternativa seriam as prisões empresas mas, voltando ao cinema, os Condenados de Shawshank ilustra bem o que uma prisão empresa pode ser e, quando estão em jogo liberdades fundamentais, tenho muito medo do espírito capitalista.
O nosso sistema não funciona bem? Não funciona de certeza mas o equilíbrio é demasiado difícil de atingir.
Continuo a achar que a mudança não deve ser feita nas prisões e nas leis mas nas nossas vidas.

Teresa disse...

Shark, pela segunda vez hoje, não podia estar mais de acordo contigo.

Teresa disse...

Visconde, o post sobre a "qualidade de vida" está na calha há muito mas têm-me faltado unhas para o escrever.

O que diz sobre a liberdade lembra-me uma aula de História, tinha eu 16 ou 17 anos, e uma das minhas professoras preferidas. Estávamos em 78 ou 79, pleno PREC, e ela contava-nos como o irmão, a estudar na Bulgária, tinha uma vida boa, muito mas muito melhor que a nossa. Segundo ela tudo lá funcionava bem e a vida das pessoas era um descanso. O Estado tomava tanta conta dos seus que até as vacinas obrigatórias vigiava. O irmão tinha-se esquecido (ou, como bom português, marimbado em...) de ir levar um reforço qualquer e dias depois de findo o prazo apareceram-lhe à porta dois enfermeiros que o levaram e, literalmente, lhe trataram da saúde.
Eu, miúda, tratei foi de saltar na cadeira quando ouvi isto e a discussão que se seguiu entre mim e a "stôra" foi mesmo sobre liberdade e qualidade de vida. Até onde podemos prescindir da nossa liberdade em nome de uma vida aparentemente mais fácil.
Ainda não tenho respostas, mas sei que prefiro longas filas nos Centros de Saúde a ter enfermeiros a baterem-me à porta.

Teresa disse...

CJ, vens das férias a falar inglês? Acho que tens muito para nos contar...

calamity jane disse...

E eu conto tudo, Chefita, a minha vida é um livro aberto...