Lucy in the sky with diamonds

Agora fiquei baralhada. Já não sou capaz de saber exactamente onde está, mas o meu cheiro diz-me que será nas prateleiras por trás do armário dos livros antigos do escritório. Seria esse o primeiro sítio onde o iria procurar, apesar de nos últimos tempos só me lembrar de aí ver arrumados os velhos vídeos beta. Estará por lá a gravação do concerto do Simon e Garfunkel no Central Park, a do Rally de Portugal com montagem caseira, paciente e suada que o digital ainda não era nem sonhado, mas onde a música dos Queen acerta ao segundo com as curvas da Cabreira e o salto de Fafe e estarão tantas e tantas outras que são passagens directas num regresso ao passado.

Fui lá direitinha mas já revirei dezenas de memórias, espirrei com o pó, voltei a arrepiar-me de medo quando me vieram à mão o Peeping Tom e o Cão dos Baskervilles, mas estou ainda muito longe do que quero. Estou vinte anos à frente. Preciso de cavar mais fundo, sair do plástico e chegar às caixas de cartão e bobines de fita.

A garagem da estação, que nunca foi garagem mas o Polo III do Arquivo Lá de Casa, é a opção seguinte mas antes de me meter no carro ainda tento uma ou duas gavetas. Escorrem mais duas horas. Na gaveta do fundo da antiga mesa de cabeceira da bisavó Cândida encontro uma outra preciosidade. Não era a que eu procurava mas o teste do carbono é infalível – a idade é exactamente a mesma, tem quarenta anos, feitos hoje. Uma cassete também, mas esta de áudio. Sei demasiado bem o que lá está e quero ouvi-la mais uma vez. Barulhos da fita, uns estalidos com o arranque do gravador e a voz grave e pausada do meu pai a aparecer – E o que é que os meninos queriam que os homens lhes trouxessem da Lua?

O “uma boneca” sai de rajada e de raiva da minha voz de seis anos, naquela noite obrigada a responder às claras ao odiado gravador que vivia nas profundezas dos bolsos do meu pai para traiçoeiramente registar o que agora me delicio a ouvir, mas que na altura me deixava furiosa pela intrusão sem licença num presente que eu não queria futuro. E basta-me ouvir este curto e seco uma boneca para voltar àquela noite, à sala da casa antiga, ao gravador e à pergunta a que não me apetecia responder. O que é que eu queria da Lua? O que eu queria era comigo, não era para ser partilhado com aquele bicho falso que iria mostrar a quem quisesse ouvir o que eu nem a mim sabia dizer. Tenho de responder, não é? Pois que salte a boneca com que nunca brinquei mas que despacha o assunto, porque se isto é uma récita e o que precisam é uma gracinha sejamos uma prima donna e, por um pequeno momento, façamos uma mãe feliz.

Cabra. Aquela foi, sem dúvida, a minha primeira cabronice oficialmente registada. Faz hoje, esta noite, quarenta anos.

A fita continua a correr, tenho de sair para ir à garagem mas não resisto a ouvir a voz entaramelada do meu irmão que é gajo, tem três anos, ainda não sabe quem é o Ruca e muito menos os Tweenies e portanto fica-se pelo carro de bombeiros com um atrelado e uma sirene de polícia e a da minha irmã, quase a fazer cinco anos mas muito mais realista que qualquer um de nós, apesar da ligeira vertente mística, que na sua resposta, e depois de ter ponderado o factor céu, pediu um anjinho vivo, porque se eles fossem como as lebres e andassem a atravessar-se a correr na frente daquele enorme foguetão era melhor que os senhores parassem para apanhar um porque anjo morto e esfacelado a ela não lhe servia.

A cassete está longe de ter chegado ao fim, mas não posso perder mais tempo e a conversa a seguir não faz parte da efeméride. Arranco para a garagem que nunca o foi e pelo caminho prometo a mim mesma que a próxima viagem no tempo vai ser com ele, que não vou dar qualquer atenção às memórias meretrizes que se vão ostensivamente bambolear na minha frente assim que entrar naquela sala uterina. Não vou cair na ratoeira, não vou mergulhar em caixas de cartas antigas, vou passar pelos brinquedos velhos como se nem os visse, recusar-me-ei a lançar um único olhar para os montes dos disco vinil, não abro um único livro. Tenho 758 palavras escritas e ainda nem cheguei lá, ao filme Super 8 que comecei a procurar ali em cima. Vou descer à terra, vou voltar a sentar-me na cama de onde ainda não saí, vou encontrar em menos de um ai as imagens que queria ver e vou então voar com elas até à Lua, a mesma Lua para onde aqueles homens de fatos estranhos partiram há quarenta anos. Vou voltar a lembrar-me do meu pai a explicar-nos o que era o foguetão, era assim que lhe chamávamos, de como me era quase impossível perceber o que os meus olhos estavam a ver, do medo que tive quando o primeiro depósito de combustível foi solto, de ouvir que ainda tinham de cair mais dois antes da grande viagem realmente começar. E depois vou voltar a viver aquele frio no estômago do vazio e da espera. E recordar os quatro dias a seguir em que fui naquele foguetão que ia subindo pelo céu sem saber se de repente não iria cair no terraço tal qual a minha bola saltitona verde escura que eu atirava ao chão com força e desaparecia no ar para só voltar a aparecer muito mais tarde quando caía, desenfreada e maldosamente, em cima das telhas do galinheiro da Menina Jesus.

Não sei se o Neil Armstrong daqui a uns dias deu mesmo aquele pequeno passo, mas eu dei o tal passo grande com ele. Por esta altura eu estava na Apollo 11 e voltei a estar cada vez que o projector era ligado, a película metida nos trilhos e na parede da sala apareciam aqueles homens que durante muito tempo eu invejei mais que quaisquer outros. E ainda hoje, com as paredes do meu quarto à minha volta, olho para a fotografia da caixa do filme tão conhecido e saio largada em viagens sem fim. Até à Lua, talvez.

13 comentários:

sem-se-ver disse...

(bonito)



bom dia

Mente Quase Perigosa disse...

E depois de ler isto, fico a pensar que se é para resultar em textos desta qualidade, vais beber café sempre que cá vieres a casa jantar.

Bom, muito bom.

Unknown disse...

Mesmo correndo o risco de não ser original vale mesmo a pena repetir: muito bom!

(maravilhas da cafeína ou dos restos do Sr. Visconde?)

Mente Quase Perigosa disse...

(Oh p'ra mim sentadinha nas manitas, AnaT... Bonita frase...)

CybeRider disse...

Tereza! Foste mais feiticeira que a Lua. Que texto hipnótico... (Ora deixa-me ver a garagem... Os caixotes... Ah sim... Aqueles... A televisão onde eles estavam já não existe... Há para ali talvez um "Action Man" com fato de astronauta... Vou ficar a brincar toda a tarde...)

Marias disse...

O tal cafézinho deu muita produtividade de noite? Ganda lençol...

Unknown disse...

e epois disto o que é que uma gaja diz?


(muito bonito)





dá-lhe café, Peixa. dá-lhe sempre cafe!!

gaija do norte disse...

gosto quando te dá para escrever!
e estavava aqui a pensar que qualquer dia iamos à lua, mas já lá fomos tantas vezes...

Teresa disse...

Mas não fomos juntas, gaija. Não fomos juntas...

gaija do norte disse...

não, juntas não fomos!

Teresa disse...

Deve ter sido mesmo do café da Peixa. É daqueles com o primo do Clooney e como se sabe o Clooney e família são sempre uma fonte de inspiração.

gaija do norte disse...

da família dele não percebo nada...

Teresa disse...

Temos andado em voos diferentes, gaija