Será? Espero que sim, mas sou sempre tão céptica...

O “excesso de doentes” e a falta de dois médicos foram as razões dadas pela directora clínica do Hospital de Vila Franca de Xira, Ana Alcazar, para justificar a demora no atendimento na urgência daquela unidade na segunda-feira.

Setembro. 10 anos atrás. A Expo98 estava nos últimos dias e eu resolvi aproveitar os bilhetes oferecidos no Natal anterior para ir com as miúdas fazer a visita que tinha de ser. Na altura vivia perto de Coimbra e a forma mais prática de viajar com duas crianças pequenas e a babysitter da altura era de comboio.
Vimos tudo, revimos, e dois dias depois voltámos para casa. Tem piada, era segunda feira. Apanhámos um comboio Alfa em Santa Apolónia, instalámo-nos com as crianças e esperávamos chegar a Coimbra.
Eu e a Clara não chegámos. Na passagem pela novinha Gare do Oriente, e enquanto o comboio estava parado, aproveitei para ir lavar-lhe as mãos, que já deviam ter mais chocolate que uma mousse caseira. Iamos a sair da casa de banho quando se cruzou connosco a senhora de vestido azul. O comboio já tinha arrancado, estávamos quase em Sacavém, a senhora devia estar com pressa de chegar a algum lado, empurrou a miúda para passar e a seguir só vi uma porta de casa de banho de comboio a fechar-se, uma coisa em aço com ar resistente, e o dedo indicador da Clara a ficar lá preso.
O que se seguiu não foi bonito. O comboio afastava-se cada vez mais de Lisboa, decidido a parar só em Coimbra, a cada segundo que passava eu via os hospitais a ficarem para trás, o alarme foi puxado, que queria era sair dali o mais depressa possível, a minha mão comprimia um dedinho minúsculo com a cabeça segura por fios, o INEM foi chamado, no sítio onde o comboio parou não nos conseguiam tirar - aprendi que isso de puxar o alarme pode ser a maior estupidez... - e quase uma hora depois seguimos viagem. Próxima paragem, Vila Franca de Xira...
Eu não tinha telemóvel, mas um passageiro qualquer tinha-me emprestado um e os avisos à família estavam feitos. Os pormenores deixei por conta deles, que tinha mais com que me preocupar.
Entrámos as duas no Hospital de Vila Franca ao colo dos homens do INEM, que já tinha sido assim que saimos do comboio. Estávamos coladas. A minha mão agarrava o dedo dela desde o primeiro momento, o sangue tinha secado e eu não a podia tirar que não sabiamos o que mais viria atrás. Tinha dado "jeito", que usámos as nossas duas mãos livres para cantarmos o doidas doidas doidas andam as galinhas enquanto esperávamos, demasiado tempo, que nessas alturas até um minuto é demasiado, que o comboio recomeçasse a andar e nos levasse até Vila Franca. A Clara, mesmo com dedos esborrachados, é capaz de cantar, e eu lá tive de ser capaz também.

Fomos separadas já nas Urgências. O dedo estava a desgraça que se previa, precisava de ser refeito e foi chamado o cirurgião de serviço. Foi chamado, juro que foi chamado. Mas não vinha. E nós esperávamos e ele não vinha. E esperámos. E continuámos a esperar. Passou mais uma hora e nós esperávamos que esperança tem de haver sempre. Cirurgião é que nada.
Já disse que era segunda feira? Era, mas esperávamos quase sozinhas, que as urgências estavam vazias. Tão vazias e ninguém nos via quando começaram a andar para trás e para a frente umas funcionárias com ar aflito à procura de alguém. Seria do cirurgião de serviço?
Nas conversas nervosas das senhoras eu percebia a insistência em Secretaria de Estado. Já teriam aberto um inquérito para descobrir o desgraçado do cirurgião desaparecido?, pensava eu... Não, não pensava, que quando pensei resolvi o mistério. O meu telefonema do combóio.... Claro que se metia hospitais tinham ligado ao meu tio A. e à M. que eles é que são os experts no assunto. Tão experts que na altura eram os dois assessores do Secretário de Estado da Saúde. Estavam a trabalhar ainda, começaram a ligar para o Hospital para saberem de nós e, milagre!, não é que assim que cairam as primeiras chamadas apareceu logo o tal cirurgião desaparecido?

Soube por onde andava ele quando o meu tio chegou para nos levar de regresso a Lisboa. O dedo da Clara já estava no lugar, o trabalho foi perfeito, apesar de ainda hoje ter um ar esborrachado, e o cirurgião, um tipo novo e mal disposto, não acabou de jantar nesse dia. Nem ele nem a namorada, com quem estava a jantar enquanto eu e a Clara esperávamos numa curva de um corredor de hospital.

Já referi que o cirurgião estava de serviço às urgências, não já? E que era suposto não sair do Hospital, ou isto ainda não tinha dito?

É.... Era segunda-feira e havia um "excesso de doentes". Foi essa a razão, ou teria sido, se nesse dia as contas não tivessem saído mais furadas que o meu passador do leite, para o dedo de uma criança de três anos ficar longas horas à espera de ser remendado...

4 comentários:

Brisa disse...

Até dói, ler esta história! Dói pelo entaladão no dedinho da criança... e dói pelo resto! É para patrocinar jantarinhos com namoradas que todos os meses depositamos, fielmente, o nosso contributo para a segurança social. Segurança?

Anônimo disse...

Agora houve uma médica que disse «esta é das que vai aos hospitais privados mas quando precisa de uma urgência vem aqui». Foi uma senhora de Alverca que fugiu esbaforida para o Hospital dos Ingleses, coitada da senhora. E também coitada da outra, a pobre, a que disse aquilo...
JCFrancisco

Anônimo disse...

O comentário de cima (JCFrancisco), creio ser de um nosso amigo comum. Foi ele que me sugeriu esta visita ao seu blogue, que desconhecia. Li o seu post, e outros. Gostei. Vou passar a vir mais vezes. Em troca, convido-a a ir até ao meu blogue: Sarrabal,blogs.sapo.pt
Coloquei hoje um post com duas histórias "interessantes" sobre o hospital de Vila Franca de Xira.
Ando nestas andanças (blogue e comentários) desde Junho do ano passado. Um pouco por culpa do Zé do Carmo...
Também estou no Algarve, onde passo largos meses (Areias de São João, Albufeira).

Saudações cordiais
Soledade Martinho Costa

sem-se-ver disse...

um país que é uma choldra.