Uma mulher de 29 anos foi hoje atropelada mortalmente por uma viatura de recolha de resíduos da Câmara Municipal de Alpiarça, disseram à agência Lusa fontes dos bombeiros e da autarquia.
Quando eu tinha dezassete anos e me deram carta de alforria e a chave de uma casa que passou a ser minha vieram também inúmeras regras no pacote. Uma delas, ditada pelo meu pai, era que "lá em casa não entra um rapaz nem que seja para pedir um lápis".
Na altura estranhei a secura do recado, que não estava habituada a que as coisas fossem tratadas assim, mas não discuti a aparente falta de inteligência da ordem, que o espaço para negociar não era muito e as tais chaves podiam voltar a mudar de mão a qualquer momento.
No primeiro ano que vivi sozinha, e apesar da ordem, nunca neguei um lápis a ninguém, usasse calças ou saias, e o único desgraçado que só conheceu as escadas do prédio foi o meu namorado - esse nunca entrou, que se quero negociar tenho de ter espaço e se ele queria um lápis que o trouxesse de casa que por ali não havia disponíveis.
A primeira vez que os meus pais apareceram por lá, assim a meio da tarde, sem aviso prévio mas também sem maldade ou sem queres ver que já te apanhámos, tinha a sala cheia de gente. Amigos, colegas, uns com calças, outros com saias. Acho que não estava ninguém de calções e muito menos com as calças na mão. Lembro-me bem de no minuto a seguir o meu pai estar na conversa com toda a gente e todos encantados com ele e da minha mãe fazer-me esgares para ir ter com ela à cozinha onde me perguntou, verdadeiramente preocupada, se não tinha medo que todos aqueles homens me fizessem mal.... O todos aqueles homens eram miúdos como eu e se não estávamos a jogar à Canasta estariamos a estudar, que lá por ser casa de estudanta não era uma república e sou cabra mas tenho, ou teria, juízo.
No segundo ano que fui para Coimbra, para a mesma casa, tratei de não levar as mesmas regras. Tinha feito tudo certo e para espanto, ou não, dos meus pais, os seus pesadelos mais negros não se tinham concretizado - o meu pai não viu as minhas notas descerem uma décima que fosse e a minha mãe não teve de tricotar sapatinhos de bébés, que afinal a filha não lhe tinha aparecido grávida e, vá-se lá saber porquê, até era ajuízada.
Com estas munições parva era se não as fizesse valer e tratei de convocar uma reunião séria antes que as férias acabassem - tinhamos de falar na regra do lápis. Expliquei-lhes que, como tinham tido oportunidade de verificar, a tal história de menino não entra nunca tinha sido cumprida, mas que preferia fazer as coisas sem pensar que estava a ir contra aquilo a que me tinha comprometido e que essa história do lápis era demasiado patética.
Foi aí que o meu pai me contou a história dos carros do lixo e de como podem ser mortalmente perigosos. O meu pai era uma pessoa muito calma, com uma enorme fleuma, bastante inteligente e um excelente educador. Explicou-me que, como era normal, morreu de medo quando me abriu as portas à liberdade e me deixou por minha conta. Que a vontade que teve foi fazer uma imensa e infindável lista com todos os perigos que me podiam aparecer e explicar como me defender deles. E falou-me dos carros do lixo. Disse-me que apesar de andarem a vinte à hora já tinha havido gente que tinha morrido atropelada. Aparentemente não representam qualquer ameaça, na sua modorra de mau cheiro e na imensidão que não os deixa passar despercebidos. Mas era essa a ratoeira - por não os associarmos ao perigo baixavam-nos as defesas e quebravam-nos a atenção. Explicou-me também que se me tivesse dito para ter cuidado com os carros do lixo eu teria achado ridículo e não daria qualquer importância. Ele até poderia preocupar-se, mas esse era dos tais perigos que eu teria de descobrir sozinha. Ele dava as regras gerais, ensinava a atravessar ruas e a ter cuidado, mesmo quando não parecesse haver necessidade de o ter.
Com os lápis a história era a mesma - na impossibilidade de me defender de tudo quis manter a porta fechada a esse tudo que o assustava. Estava claro que as decisões teriam de ser cada vez mais as minhas, e podia tomá-las e emprestar os lápis que quisesse, mas não me podia nunca esquecer dos carros do lixo.
Pelos vistos os carros do lixo não podem mesmo ser menosprezados e esta notícia de hoje fez-me recordá-lo mais uma vez. Com as minhas filhas nunca me esqueci dos carros do lixo e se sei que não poderei dar-lhes uma lista detalhada do podem e não podem, tento ensiná-las a pensar e a perceber que nem as coisas ridículas e inofensivas como lápis e carros do lixo são tão ridículas e inofensivas assim.
Quando eu tinha dezassete anos e me deram carta de alforria e a chave de uma casa que passou a ser minha vieram também inúmeras regras no pacote. Uma delas, ditada pelo meu pai, era que "lá em casa não entra um rapaz nem que seja para pedir um lápis".
Na altura estranhei a secura do recado, que não estava habituada a que as coisas fossem tratadas assim, mas não discuti a aparente falta de inteligência da ordem, que o espaço para negociar não era muito e as tais chaves podiam voltar a mudar de mão a qualquer momento.
No primeiro ano que vivi sozinha, e apesar da ordem, nunca neguei um lápis a ninguém, usasse calças ou saias, e o único desgraçado que só conheceu as escadas do prédio foi o meu namorado - esse nunca entrou, que se quero negociar tenho de ter espaço e se ele queria um lápis que o trouxesse de casa que por ali não havia disponíveis.
A primeira vez que os meus pais apareceram por lá, assim a meio da tarde, sem aviso prévio mas também sem maldade ou sem queres ver que já te apanhámos, tinha a sala cheia de gente. Amigos, colegas, uns com calças, outros com saias. Acho que não estava ninguém de calções e muito menos com as calças na mão. Lembro-me bem de no minuto a seguir o meu pai estar na conversa com toda a gente e todos encantados com ele e da minha mãe fazer-me esgares para ir ter com ela à cozinha onde me perguntou, verdadeiramente preocupada, se não tinha medo que todos aqueles homens me fizessem mal.... O todos aqueles homens eram miúdos como eu e se não estávamos a jogar à Canasta estariamos a estudar, que lá por ser casa de estudanta não era uma república e sou cabra mas tenho, ou teria, juízo.
No segundo ano que fui para Coimbra, para a mesma casa, tratei de não levar as mesmas regras. Tinha feito tudo certo e para espanto, ou não, dos meus pais, os seus pesadelos mais negros não se tinham concretizado - o meu pai não viu as minhas notas descerem uma décima que fosse e a minha mãe não teve de tricotar sapatinhos de bébés, que afinal a filha não lhe tinha aparecido grávida e, vá-se lá saber porquê, até era ajuízada.
Com estas munições parva era se não as fizesse valer e tratei de convocar uma reunião séria antes que as férias acabassem - tinhamos de falar na regra do lápis. Expliquei-lhes que, como tinham tido oportunidade de verificar, a tal história de menino não entra nunca tinha sido cumprida, mas que preferia fazer as coisas sem pensar que estava a ir contra aquilo a que me tinha comprometido e que essa história do lápis era demasiado patética.
Foi aí que o meu pai me contou a história dos carros do lixo e de como podem ser mortalmente perigosos. O meu pai era uma pessoa muito calma, com uma enorme fleuma, bastante inteligente e um excelente educador. Explicou-me que, como era normal, morreu de medo quando me abriu as portas à liberdade e me deixou por minha conta. Que a vontade que teve foi fazer uma imensa e infindável lista com todos os perigos que me podiam aparecer e explicar como me defender deles. E falou-me dos carros do lixo. Disse-me que apesar de andarem a vinte à hora já tinha havido gente que tinha morrido atropelada. Aparentemente não representam qualquer ameaça, na sua modorra de mau cheiro e na imensidão que não os deixa passar despercebidos. Mas era essa a ratoeira - por não os associarmos ao perigo baixavam-nos as defesas e quebravam-nos a atenção. Explicou-me também que se me tivesse dito para ter cuidado com os carros do lixo eu teria achado ridículo e não daria qualquer importância. Ele até poderia preocupar-se, mas esse era dos tais perigos que eu teria de descobrir sozinha. Ele dava as regras gerais, ensinava a atravessar ruas e a ter cuidado, mesmo quando não parecesse haver necessidade de o ter.
Com os lápis a história era a mesma - na impossibilidade de me defender de tudo quis manter a porta fechada a esse tudo que o assustava. Estava claro que as decisões teriam de ser cada vez mais as minhas, e podia tomá-las e emprestar os lápis que quisesse, mas não me podia nunca esquecer dos carros do lixo.
Pelos vistos os carros do lixo não podem mesmo ser menosprezados e esta notícia de hoje fez-me recordá-lo mais uma vez. Com as minhas filhas nunca me esqueci dos carros do lixo e se sei que não poderei dar-lhes uma lista detalhada do podem e não podem, tento ensiná-las a pensar e a perceber que nem as coisas ridículas e inofensivas como lápis e carros do lixo são tão ridículas e inofensivas assim.
6 comentários:
que boa história.
e com reminiscências muito trágicas, para mim.
tive uma colega que assim morreu. em coimbra. teria eu os meus 14 anos, conhecia-a desde criança. nunca mais o esqueci.
sabes que na altura o meu pai deu-me o exemplo da filha de um colega que tinha morrido assim. só pode ser a mesma....
provavelmente.
(a ver a ver e os nossos pais foram colegas de trabalho...)
podiam ser só colegas de profissão, mas já agora, edp ou such?
nope. afinal não eram...
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