volta, Stephanie Meyer, estás perdoada!

Por vezes é o nosso próprio feitio que nos trama.
Quase sempre, aliás.

Tenho um péssimo hábito, que me limita imenso na minha vida, que é o de não dizer mal de coisas que não li, não vi, não ouvi, não experimentei.

Talvez por isso não tenha nada contra a homossexualidade masculina***. Nunca levei no cu, não me pronuncio. Só não consigo é perceber como é que gostam de homens, mas isso é outra conversa.

Ora nada disto quer dizer que sinta qualquer género de interesse em ir experimentar tudo só para saber como é, ou para poder dizer mal. Voltando ao mesmo exemplo, não estou minimamente interessado em ser sodomizado por um senhor só para poder dizer se é bom ou não.

Mas passando ao tema de hoje:

Está meio mundo a dizer mal do livro da moda, 50 Shades Of Grey, outro meio a lê-lo, e outro meio a fingir que não sabe do que se trata porque associa isso a um fenómeno de pobres*, como a telenovela.

Li as críticas. Li excertos. Detestei. Achei que era um livro básico, com uma escrita desinteressante, repetitiva e desconexa, com um recurso entediante às mesmas metáforas uma e outra e outra vez, com uma esquizofrenia de discurso narrativo que nos faz pensar que a narradora são duas pessoas diferentes, e que ainda por cima se percebe que isto não é feito de propósito, e com monólogos interiores da narradora que eu achei que seriam coisa para experimentar em vez de azeite com mostarda e clara de ovo da próxima vez que precisasse de vomitar e nao conseguisse.

Mas lá se me levantou o meu próprio monólogo interior, que também consegue ser um pequeno cabrão quando lhe dá para isso, e que me disse "lá estás tu, pá, a querer dizer mal de uma coisa que nem sequer leste".

"Ai é? Resolve-se já!", foi a resposta que lhe dei no calor da discussão. E percebi logo que já me tinha lixado.

Eis portanto que dei por mim a ler o 50 Shades Of Grey.

O livro lê-se surpreendentemente bem, como aqueles canais no YouTube de vídeos de pessoas a cair para cima de bolos e a escorregar na lama de vestido de noiva, e em que damos por nós a clicar no vídeo seguinte. Caí num desses uma vez e consegui arrancar-me do transe e parar de clicar só quase meia hora depois. Jurei para nunca mais. Mas já vi, portanto já posso dizer mal se quiser. E aprendi nessa altura que as pessoas do telemarketing da PT - que me me ligam com frequência, como se fossem velhos amigos - só ligam às horas erradas. Meia hora de vídeos daqueles, e nem um ligou para me interromper e me salvar.

Mas voltemos às Shades Of Grey.
Lido o livro, achei que era um livro básico, com uma escrita desinteressante, repetitiva e desconexa, com um recurso entediante às mesmas metáforas uma e outra e outra vez, com uma esquizofrenia de discurso narrativo que nos faz pensar que a narradora são duas pessoas diferentes, e que ainda por cima se percebe que isto não é feito de propósito, e com monólogos interiores da narradora que eu achei que seriam coisa para experimentar em vez de azeite com mostarda e clara de ovo da próxima vez que precisasse de vomitar e nao conseguisse.

Eh pá, eu achava que o Twilight era mau... achava que a Corin Tellado escrevia repetidamente as as mesmas frases e fazia livros diferentes com aquilo, e que isso era mau.

50 Shades Of Grey é melhor que muita fan-fic que por aí anda. É. É melhor do que muitos autores publicados que por aí andam. É, embora isso seja mais um demérito para esses autores e para os seus editores que um elogio à senhora James.

Quanto à história, é a soma de todos os clichés que se possa pensar, salvo um ou dois.
Já toda a gente sabe a história portanto nem vale a pena falar nela, mas encantam-me particularmente os lugares comuns "menina virgem e pobre encontra príncipe encantado solteiro, lindo, inteligente, divertido e rico", "ele é misterioso porque tem traumas que não lhe quer contar, mas ela vai descobrir" e "ele tem problemas que fazem dele uma pessoa diferente do que ela gostava que ele fosse, mas ela vai ajudá-lo e vai mudá-lo". Autêntica caixa de ressonância daquilo que é um certo imaginário feminino pós Corin Tellado, em que essa certa mulher, libertada, já não anseia simplesmente "ser salva" mas sim "salvar", para então "ser salva".

Mas isso não interessa nada, falemos de coisas importantes.

50 Shades Of Grey é vendido e apregoado como livro "erótico".

A literatura erótica actua de uma forma específica, sobre um órgão sexual chamado "cérebro".**
Funciona de forma indirecta, actuando sobre a imaginação do leitor.
Só na literatura "erótica" é possível assistir a um acto sexual inteiro sem ter a mínima noção do tamanho das mamas da gaija nem se o pénis do gaijo é grande ou pequeno. (Ela diz que é grande. Mas ela é virgem. Sabe-se lá o que é a noção de "grande" de uma mulher que a coisa maior que já enfiou na vagina foi um tampão?)

Claro que isto é um truque. Ao não descrever a protagonista, a autora permite que qualquer mulher se identifique com ela, seja gorda ou magra, tenha as mamas grandes ou pequenas. A própria self-image da protagonista é o cliché da imagem que grande parte das mulheres tem de si mesma. Normal, banal, cheia de defeitos, comparada com a melhor amiga que é linda e deslumbrante.

50 Shades Of Grey não é erótico. É pornográfico. É pornográfico na forma como é construido para dissimuladamente permitir a identificação da leitora com a protagonista, a idealização física de Grey de acordo com as fantasias de cada um.

É pornográfico na forma como explora o BDSM em todo o seu cliché de lado "proibido" da sexualidade, de lado "vedado" à maior parte das pessoas, de coisa em que se entra porque alguém nos arrasta para ele, porque somos frágeis, e que quando estamos lá dentro nos "prende" e nos "estraga".

É pornográfico na maneira como utiliza os clichés para levar os leitores pelo caminho mais fácil.
Pela maneira como não os faz pensar. Não os faz questionar. Não os faz pensar fora daquilo que estão a ler.

É talvez o que distingue a literatura de um simples texto escrito.
A literatura produz em nós emoções e idéias novas, idéias próprias, idéias que são o que o nosso cérebro produz com o material que o escritor nos dá.

Por isso é que um manual de instruções de uma torradeira não é literatura, e não o pretende ser.
Pretende transmitir-nos indicações precisas e concretas, que passam do autor para o leitor sem produzir novas idéias e novos conceitos e novas sensações que nem o autor teve. E ainda bem, não se quereria as pessoas a tentar as torradeiras de formas próprias, individuais e criativas depois de ter lido o manual.

A pornografia é a manipulação imediatista da libido, através do uso de imagens, linguagens e fórmulas sexualmente sugestivas, de uma forma explìcitamente deliberada para provocar excitação sexual no leitor.

O objectivo da pornografia é, como nos manuais de instruções, o oposto da literatura. A pornografia é para ser tomada pelo valor facial. Se se diz que ele lhe "enfia o caralho na boca", não é para ficarmos a pensar no sentido metafórico disto, nem no valor simbólico do acto de fazer um broche. Pornografia não é literatura.

Do ponto de vista do texto, frase a frase, 50 Shades Of Grey é pornografia porque não está escrito para fazer ninguém pensar.

O problema é que a pornografia é suposto dar tesão. E 50 Shades Of Grey dá pouca tesão.

Mas um livro, dirão, é mais que o texto, é uma mensagem e uma história. E 50 Shades Of Grey não tem uma mensagem e uma história? Tem, mas é conseguida inteiramente à base de clichés. A relação de uma mulher mais pobre com um homem mais rico. O aceitar ou não de presentes, quando ele por um lado lhe diz que quer ter uma relação puramente sexual com ela e ao mesmo tempo lhe compra prendas caras. Aqui está um tema importante a explorar. E como lida o livro com ele? Ela resmunga um bocado, cala-se durante uns tempos, acaba por lhe dizer que sente que ele lhe está a pagar como se ela fosse uma puta, ele diz-lhe que não é nada disso, e a coisa acaba aí. Realmente não dá muito que pensar.

O mais importante de 50 Shades Of Grey é o que não tem a ver com 50 Shades Of Grey.
E é na verdade essa a razão fundamental que me leva a escrever sobre isto.

O mais importante de 50 Shades Of Grey é que, talvez pela primeira vez, um livro com um tema abertamente sexual atinge um público mainstream. E é isto que é novo. E atinge-o porque faz um bypass completo aos canais tradicionais de publicação. É algo que vem da fan-fiction, que começa a ser publicado num site, em capítulos, que só depois se transforma num livro, que é editado por uma editora online, que só é detectado e percebido pelas grandes editoras quando já tomou proporções que ninguém pensou atingíveis.

50 Shades Of Grey tem este grande mérito, o de mostrar que é possível atingir sucesso comercial em grande escala passando completamente ao lado dos gigantes da edição comercial.

Já tinha acontecido com a música.
Aconteceu agora com os livros.
Será mais difícil acontecer com o cinema apenas porque (ainda) é necessário mais dinheiro para fazer um filme, mas lá chegaremos.

A relação entre autores e leitores, entre produtores e consumidores está a mudar, a tornar-se menos mediada, a tornar-se mediada de uma forma diferente. Quem não perceber isto e não se adaptar vai definhar e desaparecer. Por mais que use os lobbies para adiar o facto.

50 Shades Of Grey continua a ser um mau livro, mas tem o mérito de demonstrar isto.

A dúvida, a grande dúvida, é se isto não é o princípio do fim da literatura.


* pobres/incultos/palermas/básicos/que não sabem o que é bom/deviam é ler Ezra Pound ou Delany ou Djuna Barnes/whatever

** que se situa na cabeça, caso alguém não esteja bem a ver o que é. Não, não é esse, esse é a língua. Isso. O outro.


*** estava aqui escrito "não tenho nada contra os homossexuais masculinos", o que é verdade mas não era o que que queria ali dizer. E não, também não tenho nada contra os homossexuais masculinos, ou femininos, ou contra seja quem fôr, e acho que o conceito em si - ter alguma coisa contra alguém por características individuais ou por opçoes que ele tomou e que não me impactam ou influenciam - é uma estupidez.


ah, e li o livro em inglês, portanto não sei se a tradução portuguesa está bem feita ou não. o título tem uma tradução duvidosa, que parece resultar bem e ser um bom título - antes de se ler o livro; depois de se ler o livro parece uma tradução feita por um gabinete de marketing que não leu a obra. e se calhar é. e se calhar têm razão. lê a obra quem já pagou. e o importante nisto é vender livros...

Um comentário:

Teresa disse...

Deixa ver se percebi: essa tal Meyer quis misturar John o Chauffeur Russo, do Max Du Veuzit, com a Lulu do Bigas Luna. Calhou cocó, não foi?