Pescadores portugueses são das Caxinas e da praia de Mira

O Carlos. Será o Carlos? Vinha a conduzir, a meio da tarde, quando ouvi falar na Praia de Mira (assim, com letra grande, que aqui praia é nome de terra!) e, desde aí, que só penso no Carlos. O Carlos foi meu colega de liceu há muitos anos atrás. Era parecido com o Cat Stevens e chegou à escola lá do sítio quando a de Mira se ficou pelo 9º ano. Fruta fresca. Exactamente isso, depois de anos seguidos a conhecer de cor todas as caras, chegava fruta fresca.
O Carlos também começou por ser fruta, mas não havia kiwi que lhe servisse. Tinha uma nobreza que não permitia gritinhos de adolescentes nem requebros de sala de convívio. Como já disse, Cat Stevens. Lindo, alto, moreno, mãos enormes, um sorriso de marés dependente das luas e um ar de perdido no mundo. De toda aquela gente que chegou naquele ano, fruta fresca, só me lembro do único que não vinha encaixotado e pronto a servir. Foi meu amigo e chamava-se Carlos. Queria seguir Engenharia Naval e construir os barcos que não seriam mais os caixões de quem lhe estava perto. Não foi há muito tempo, mas foi no tempo da arte xávega, com os barcos a bailarem no meio das ondas a rebentar e os bois a ajudarem as mulheres a puxar as redes. Foi no tempo em que o luto se fazia na praia e as viúvas e as mães e as irmãs, antes de voltarem para as couves e o milho, passavam a noite na areia a chorar os seus homens que ficavam no mar. Diferente de Nova York, como o meu pai dizia, onde não se grita pela morte, mas se carpe a dor contida em anos de psicanálise. Ali era assim - gritos de praia e a vida a continuar com um xaile negro pela cabeça.
O Carlos vivia com a família que ia tendo e mal falava nos outros, nos que o mar e a França lhe tinham tirado. Era a personagem romântica de qualquer livro de Camilo e estaria destinado a morrer tísico com um mal de amor, mas naquela altura os nossos sonhos andavam por muito longe e ainda não sabiamos que iamos ter que os gritar na praia ou desfiar no divã do shrink de serviço.
Voltei a ver o Carlos quando o meu vestido do Baile de Finalistas era uma peça de museu e o autocarro que nos tinha levado até ao Algarve estava transformado em milhares de latas de atum. Encontrei-o na Praia de Mira. Não, não tinha ido para a Escola Naval. Tinha ido para França, tinha regressado e andava no mar. Entre duas cervejas, explicou-me qual era o lugar que tinha escolhido no barco. Tinha um nome, mas não me lembro. Disse-me que era aquele onde se morria primeiro.
Hoje lembrei-me do Carlos e lembrei-me da Peste do Camus. Lembrei-me de como a peste começou longe e se foi aproximando e aproximando, até começarem a morrer os que estavam mesmo ali ao lado. E foi só nessa altura que a Peste foi peste.
Hoje pensei naquele homem no mar e chamei-lhe Carlos. E estou triste porque o Carlos morreu. Ou o António. Ou o Zé.
Ou o Carlos. Que queria ser Engenheiro Naval e morreu no mar. E era da Praia de Mira. Com Pê grande, que os nomes das terras também honram os homens.

8 comentários:

susana disse...

ernesta, agora comoveste-me. porque a prais de mira faz parte do meu passado passado e do meu passado presente.
ainda se pesca com bois. a última vez que comi petinga petinga mesmo foi quando estava grávida do meu filho mais velho e os pescadores disseram: não podemos vendê-la, menina, vamos deitá-la ao mar para morrer. por isso bem pode dá-la a essa barriga tão linda, que há-de estar quase a nascer.
no ano passado não fui lá, mas ficou a faltar-me.

Teresa disse...

Fui lá este ano. Não ia há muito, mas ainda lá estava o palheiro onde o meu pai e os meus tios todos passavam as férias grandes. E a barrinha onde nós, os putos tomávamos banho. E é a Praia mais bonita de Portugal, se....
agora foste tu que me comoveste....

susana disse...

pois eu vou lá desde sempre e só não fui o ano passado. também tomava banho na barrinha, ficava mesmo ao pé da casa de praia da minha avó. e a raia de pitau, mesmo na praia? acho que ainda se come.
é a praia mais bonita, sim, com aquela cúpula de neblina. mesmo no inverno, com ventania.

Teresa disse...

ai ai.... isto de encontrar vizinhança na net assusta-me sempre.... já estou a fazer contas... se a barrinha era ao lado da casa da tua avó ora tu deves ser..... caramba, eras a da saia de ganga ou a dos calções amarelos? E ias ao Tézinho comer mariscadas?

susana disse...

não me lembro de tais peças de vestuário... nem do tézinho!. era pequena, nessa altura. praia - barrinha - casa. depois a casa foi vendida e continuei a ir, mas vinda de mais longe, só para passar o dia nas dunas e/ou no lago, consoante o tempo e as disposições... :-)

Teresa disse...

Susana,

seguiu mail para a pharmácia de serviço....
eu vou para matar saudades e tentar voltas no tempo. E o Tézinho é uma marisqueira em frente à barrinha, ao lado de uma coisa que servia de discoteca manhosa onde estava proibida de ir.

Anônimo disse...

Minhas caras : conhecem o Grupo Folclórico de Portomar ? E a tasca do Zé Tila em Mira ? A praia e a barrinha, também conheço e já lá tomei banhoca. E sou de muuuiiitoooo longe !!!

Teresa disse...

Por mim falo, mas sim, claro que conheço o grupo folclórico de Portomar e Portomar e a Lagoa e o Seixo de Mira e a caldeirada feita na areia. A tasca do Zé-Tila é que na faço ideia, mas se é tasca e boa venha a morada que vou lá ter de certeza...