Abraham foi a minha primeira internacionalização. Algarve, claro, fim dos anos oitenta. Holandês a passar férias em Albufeira. Loiro, giro e de olhos azuis como qualquer internacionalização que se preze. Ainda vai dar um post for his own, mas não é este.
O Abraham era técnico de informática e vivia em Amsterdam. Apartamento arrendado no centro da cidade. Férias no Algarve. Profissão de sucesso, a informática? Não, ou nem por isso. O gajo estava desempregado. Isso, desempregado. Vivia à custa do subsídio. Pago pelo governo holandês, pois claro.
Eu, pois, eu. Eu vivia em Lisboa. No centro da cidade. Apartamento pago. Pelos meus pais, claro. Férias em Albufeira em casa dos pais, pois então. Desempregada? Não, curso acabado há muito pouco tempo. Emprego num bom escritório de advogados de Lisboa, avença no contencioso de uma empresa e uns artigos para um jornal de referência. Tudo pago. Chegava para quê? Para os mesmos copos que o Abraham bebia e pouco mais. Férias no estrangeiro, casa própria? Sim, claro, mas nos meus sonhos.
Pobres. Somos pobres. Por mais voltas que possamos dar e mais carruagens a desfilar no Rossio com damas vestidas de sedas italianas e corte francês, somos um país pobre. Não temos ouro nas terras nem petróleo nos mares. Não somos um imenso Portugal e quando o fomos eramos pobres na mesma. Temos ricas ideias, mas pouca força nos braços quando o sol bate a pique e a ponte está mesmo a pedir uns diazinhos de praia. Não passamos fome, que sempre vai dando para o pão e para o vinho, não passamos frio que o Inverno é curto e uma andorinha faz a Primavera, mas por mais que nos aperaltemos não passamos de pobretanas a armar ao pingarelho. Sim, isso mesmo, ao pingarelho, que eu até tenho uma empregada que foi duas vezes a Lisboa, mas sempre de helicóptero. Estou a ver-me a dar umas entrevistas para aquelas revistas muito giras e muito rosas e a dizer isto com a voz nasalada que fica sempre bem - a minha empregada vai a Lisboa de helicóptero...
Do SNS, claro. Isso mesmo - Serviço Nacional de Saúde. Aquele de que agora parece bem dizer mal, mas que, felizmente para ela e para todos nós, funciona muito bem neste país de pobres que somos.
Passei a minha infância a ver fios eléctricos e a minha adolescência à porta de hospitais. Um fim de semana em Lisboa? Sim, mas isso implicava paragem nos hospitais todos do caminho. O meu pai ia só verificar umas coisinhas e vinha já já duas horas depois. Saúde, hospitais, orçamentos, equipamentos, Tribunal de Contas e o saco azul oficial do ministério, Beleza, Costa Freire, Banco Mundial e hospitais por esse mundo fora montados por portugueses. Não percebo de nada, mas tenho a cantiga toda no ouvido. É como um trá-lá-lá da música que não temos unhas para tocar mas conhecemos de cor.
E de cor sei, por ouvir dizer e não por testemunho directo que é o que conta quando contar é preciso, que o Correia de Campos é o homem que mais sabe de saúde em Portugal. Péssimo político, mas o melhor técnico. Esse, este, o mesmo que anda para aí a fechar SAPs e maternidades e que é o ódio de estimação de parideiras de ambulância - muita gente anda a parir depressa neste país, alguém anda a ouvir as vizinhas que lhes desejam uma hora pequenina. Esse, o tal Correia de Campos que fecha a urgência no país da autoestrada, que o dinheiro não estica e nas urgências contam-se os minutos e não os quilómetros.
Lembram-se daquela urgência sem nada, mas que era tudo quando nada havia e o hospital mais próximo estava a horas de distância numa estrada de curvas e buracos? Lembram-se? Eu lembro. Lembro do tempo que demorava a fazer 23 km até Coimbra e de como ter logo ali um hospital onde podia respirar cada vez que a asma me fechava os brônquios me deixou viva para estar aqui a escrever o que quer que seja. E de como agora não tenho o hospital, mas tenho a bomba que compro em qualquer farmácia e que me deixa respirar quando o corpo me nega o oxigénio.
E também me lembro de quando era miúda e deixámos por uns anos de vir passar férias para aqui, o Algarve onde agora vivo, porque o meu pai tinha tido um enfarte e se tivesse outro não havia hospital que o salvasse nem helicóptero que o levasse a Lisboa.
E de quando anos mais tarde a minha filha mais velha foi operada a um coração de dois centimetros e de como o SNS funcionou como se do Queen Mary's Hospital for Children se tratasse. E de como a mais nova foi operada de urgência a uma apendicite aguda no Hospital de Portimão, chegada directamente, com diagnóstico feito e fax à nossa espera na recepção, da Linha Saúde 24.
Lembro-me bem quando há um ano parti o braço e fui a um SAP, dos tais que o Correia de Campos de todos os ódios ainda não fechou. E de como o tipo do RX me disse que estava partido e o médico olhou e disse acho que não. E eu olhe que sim e ele olhe que não (eu só devia ser mais experiente que isto de partir braços a andar de patins já é rotina para mim). E de como ele me deu o número do telemóvel para lhe dizer se sim se não. E de como fui para o hospital de Faro e um médico belga me despachou, sem olhar duas vezes, com cinco semanas de gesso arcaico no braço. E de como ao outro dia fui para o hospital particular, com seguro de saúde pois claro e a cuspir de alto no SNS, e vim de lá depois de o mesmo médico belga me ter despachado, com o mesmo aparelho de gesso arcaico, sem ter olhado duas vezes. Ah, mas a sala de espera tinha música, o atendimento taças com rebuçados e os enfermeiros eram muito mais giros.
Do que não me lembro é de alguma vez ter ido a uma urgência por causa de uma constipação, ou a um SAP por causa de uma otite. Nem me lembro de alguma vez me terem recusado assistência médica porque não a podia pagar - e só uma das cabras júniors já gastou mais por dia em medicamentos do que aquilo que ganho por mês. Ou de ter visto alguém ficar de castigo a um canto por ter ido chatear para a urgência porque precisava de uma receita de Brufen.
Somos um país pobre. Onde há quem não tenha para comprar o leite e o pão de todos os dias. Onde os nossos velhos vivem entre os programas da tarde e as manhãs no centro de saúde, porque pelo menos encontram alguém com quem podem conversar e o senhor doutor receita umas coisas novas que eles não podem pagar mas que a Ele, ao deus de serviço, rendem um congresso na Índia sobre qualquer coisa que não interessa que o hotel era fantástico e o SNS paga. E eu pago. E todos pagamos.
OTL. Nem ATL, mas OTL. Isso é o que a maior parte dos Centros de Saúde e SAP's são - ocupação dos tempos livres. Há por aí um ministro, de quem ninguém gosta porque não fala redondo para a gente o entender, que os anda a fechar? Que feche. Não quero uma ligadura e um frasco de tintura em cada esquina, mas um hospital central que me salve se preciso fôr e meios para lá chegar depressa, que o resto tenho em casa.
Somos um país pobre com manias de rico e uma câmara de televisão em cada esquina à procura da voz do descontentamento que faz as delícias na abertura de qualquer jornal. Somos todos técnicos em tudo e sabemos exactamente o que está mal. Só não sabemos como fazer bem, que se soubessemos não precisávamos de ouro na terra nem petróleo no mar para podermos passar férias lá fora quando estamos desempregados.
Falar menos e trabalhar mais, como diriamos, se não andássemos todos por aí a falar muito e a fazer pouco.
O Abraham era técnico de informática e vivia em Amsterdam. Apartamento arrendado no centro da cidade. Férias no Algarve. Profissão de sucesso, a informática? Não, ou nem por isso. O gajo estava desempregado. Isso, desempregado. Vivia à custa do subsídio. Pago pelo governo holandês, pois claro.
Eu, pois, eu. Eu vivia em Lisboa. No centro da cidade. Apartamento pago. Pelos meus pais, claro. Férias em Albufeira em casa dos pais, pois então. Desempregada? Não, curso acabado há muito pouco tempo. Emprego num bom escritório de advogados de Lisboa, avença no contencioso de uma empresa e uns artigos para um jornal de referência. Tudo pago. Chegava para quê? Para os mesmos copos que o Abraham bebia e pouco mais. Férias no estrangeiro, casa própria? Sim, claro, mas nos meus sonhos.
Pobres. Somos pobres. Por mais voltas que possamos dar e mais carruagens a desfilar no Rossio com damas vestidas de sedas italianas e corte francês, somos um país pobre. Não temos ouro nas terras nem petróleo nos mares. Não somos um imenso Portugal e quando o fomos eramos pobres na mesma. Temos ricas ideias, mas pouca força nos braços quando o sol bate a pique e a ponte está mesmo a pedir uns diazinhos de praia. Não passamos fome, que sempre vai dando para o pão e para o vinho, não passamos frio que o Inverno é curto e uma andorinha faz a Primavera, mas por mais que nos aperaltemos não passamos de pobretanas a armar ao pingarelho. Sim, isso mesmo, ao pingarelho, que eu até tenho uma empregada que foi duas vezes a Lisboa, mas sempre de helicóptero. Estou a ver-me a dar umas entrevistas para aquelas revistas muito giras e muito rosas e a dizer isto com a voz nasalada que fica sempre bem - a minha empregada vai a Lisboa de helicóptero...
Do SNS, claro. Isso mesmo - Serviço Nacional de Saúde. Aquele de que agora parece bem dizer mal, mas que, felizmente para ela e para todos nós, funciona muito bem neste país de pobres que somos.
Passei a minha infância a ver fios eléctricos e a minha adolescência à porta de hospitais. Um fim de semana em Lisboa? Sim, mas isso implicava paragem nos hospitais todos do caminho. O meu pai ia só verificar umas coisinhas e vinha já já duas horas depois. Saúde, hospitais, orçamentos, equipamentos, Tribunal de Contas e o saco azul oficial do ministério, Beleza, Costa Freire, Banco Mundial e hospitais por esse mundo fora montados por portugueses. Não percebo de nada, mas tenho a cantiga toda no ouvido. É como um trá-lá-lá da música que não temos unhas para tocar mas conhecemos de cor.
E de cor sei, por ouvir dizer e não por testemunho directo que é o que conta quando contar é preciso, que o Correia de Campos é o homem que mais sabe de saúde em Portugal. Péssimo político, mas o melhor técnico. Esse, este, o mesmo que anda para aí a fechar SAPs e maternidades e que é o ódio de estimação de parideiras de ambulância - muita gente anda a parir depressa neste país, alguém anda a ouvir as vizinhas que lhes desejam uma hora pequenina. Esse, o tal Correia de Campos que fecha a urgência no país da autoestrada, que o dinheiro não estica e nas urgências contam-se os minutos e não os quilómetros.
Lembram-se daquela urgência sem nada, mas que era tudo quando nada havia e o hospital mais próximo estava a horas de distância numa estrada de curvas e buracos? Lembram-se? Eu lembro. Lembro do tempo que demorava a fazer 23 km até Coimbra e de como ter logo ali um hospital onde podia respirar cada vez que a asma me fechava os brônquios me deixou viva para estar aqui a escrever o que quer que seja. E de como agora não tenho o hospital, mas tenho a bomba que compro em qualquer farmácia e que me deixa respirar quando o corpo me nega o oxigénio.
E também me lembro de quando era miúda e deixámos por uns anos de vir passar férias para aqui, o Algarve onde agora vivo, porque o meu pai tinha tido um enfarte e se tivesse outro não havia hospital que o salvasse nem helicóptero que o levasse a Lisboa.
E de quando anos mais tarde a minha filha mais velha foi operada a um coração de dois centimetros e de como o SNS funcionou como se do Queen Mary's Hospital for Children se tratasse. E de como a mais nova foi operada de urgência a uma apendicite aguda no Hospital de Portimão, chegada directamente, com diagnóstico feito e fax à nossa espera na recepção, da Linha Saúde 24.
Lembro-me bem quando há um ano parti o braço e fui a um SAP, dos tais que o Correia de Campos de todos os ódios ainda não fechou. E de como o tipo do RX me disse que estava partido e o médico olhou e disse acho que não. E eu olhe que sim e ele olhe que não (eu só devia ser mais experiente que isto de partir braços a andar de patins já é rotina para mim). E de como ele me deu o número do telemóvel para lhe dizer se sim se não. E de como fui para o hospital de Faro e um médico belga me despachou, sem olhar duas vezes, com cinco semanas de gesso arcaico no braço. E de como ao outro dia fui para o hospital particular, com seguro de saúde pois claro e a cuspir de alto no SNS, e vim de lá depois de o mesmo médico belga me ter despachado, com o mesmo aparelho de gesso arcaico, sem ter olhado duas vezes. Ah, mas a sala de espera tinha música, o atendimento taças com rebuçados e os enfermeiros eram muito mais giros.
Do que não me lembro é de alguma vez ter ido a uma urgência por causa de uma constipação, ou a um SAP por causa de uma otite. Nem me lembro de alguma vez me terem recusado assistência médica porque não a podia pagar - e só uma das cabras júniors já gastou mais por dia em medicamentos do que aquilo que ganho por mês. Ou de ter visto alguém ficar de castigo a um canto por ter ido chatear para a urgência porque precisava de uma receita de Brufen.
Somos um país pobre. Onde há quem não tenha para comprar o leite e o pão de todos os dias. Onde os nossos velhos vivem entre os programas da tarde e as manhãs no centro de saúde, porque pelo menos encontram alguém com quem podem conversar e o senhor doutor receita umas coisas novas que eles não podem pagar mas que a Ele, ao deus de serviço, rendem um congresso na Índia sobre qualquer coisa que não interessa que o hotel era fantástico e o SNS paga. E eu pago. E todos pagamos.
OTL. Nem ATL, mas OTL. Isso é o que a maior parte dos Centros de Saúde e SAP's são - ocupação dos tempos livres. Há por aí um ministro, de quem ninguém gosta porque não fala redondo para a gente o entender, que os anda a fechar? Que feche. Não quero uma ligadura e um frasco de tintura em cada esquina, mas um hospital central que me salve se preciso fôr e meios para lá chegar depressa, que o resto tenho em casa.
Somos um país pobre com manias de rico e uma câmara de televisão em cada esquina à procura da voz do descontentamento que faz as delícias na abertura de qualquer jornal. Somos todos técnicos em tudo e sabemos exactamente o que está mal. Só não sabemos como fazer bem, que se soubessemos não precisávamos de ouro na terra nem petróleo no mar para podermos passar férias lá fora quando estamos desempregados.
Falar menos e trabalhar mais, como diriamos, se não andássemos todos por aí a falar muito e a fazer pouco.
2 comentários:
Não sei bem porquê, mas entendi-a perfeitamente. Creio que sei onde quis chegar. Gostei.
Lembra-se de uma coisa chamada Pão Com Manteiga? Um programa de rádio, domingos de manhã? Se for menino não sabe o que é, mas há uns dias atrás voltei a mergulhar nas delícias do Roque e da Amiga e copiei um pedaço do diálogo deles para uma caixa de comentários de um blog. Faço copy paste para aqui, ou não fosse cabra e, ainda por cima, de serviço...
” E então a Amiga, como não tinha percebido nada do que o Roque tinha dito, respondeu-lhe: Sim, num certo aspecto acho que tens razão…”
Volte sempre.
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