Umbiguismos I

Gosto do termo "cabrão". Não gosto por ser especialmente bonito, ou elegante, ou por se nos arredondar na lingua e poder ser dito quase como caberau, à inglesa, mas gosto porque me lembra Setembro. Setembro era mês de quinta, e de serra, e de primos. Era em Setembro que, de repente, o Verão ia embora e chegavam por correio, mandadas pela minha mãe, as camisolas de lã, que na serra o frio era assim - quando chegava já não arredava pé, não era um frio maricas que espreita e vai embora se se sente intimidado.
Foi em Setembro que descobri o cabrão. Estávamos na cozinha e cabrão foi a palavra de ordem até chegar a voz fininha da avó e um "meninos, isso não se diz que é muito feio". Não sei se foi o doce do ralhete ou se é a sonoridade do ditongo, mas cabrão é uma palavra de que gosto.
Das outras nem tanto, apesar de muito do calão estar devidamente etiquetado na minha memória.
"Chiça". Chiça dizia o Diabo na peça que o meu pai me escreveu para um fogo de conselho nos escuteiros. Li, reli, tornei a ler. O meu pai tinha mesmo escrito Chiça, e agora explicasse eu ao chefezinho de lenço ao pescoço que já mestre Gil Vicente....
"Minete" saiu-me desamparado em Agosto, no trocadilho que o meu irmão me pediu para fazer. E disse, e voltei a dizer. E eles riam e eu com cara de parva e de espera lá que não me apanhas e de irmã mais velha que não admite espertezas dessas ao puto e de finalmente vencida e agora vais ter de me explicar. E o gajo explicou. Demorou umas horas e muitas voltas pela Figueira, mas explicou, que naquelas bandas ninguém se deita cedo.
O "broche", que afinal não era alfinete, chegou-me pela boca experimentada da Sãozinha, que me deu todas as indicações fundamentais mesmo em frente à Câmara Municipal. Já naquele tempo estas coisas tinham o seu quê de politiquice. A Sãozinha foi a nossa Educação de Verónica - qualquer coisa era só perguntar, que ela não se fazia rogada e nós agradeciamos.
Tem piada como neste correr percebo que quase todo o meu calão tem estória. Pudesse eu escrever "cona" e poderia explicar que esta foi das primeiras - esteve desde sempre gravada no cimento do passeio do parque dos baloiços, mas nem deu para insistir porque lá por eu já saber ler a minha mãe não dobrou e recusou-se a explicar o que era, no meio de umas ameaças de se te torno a ouvir dizer isso...
A inócua "merda" está ligada ao PREC e, mais uma vez, à minha avó. Ainda a estou a ver corredor fora, falando com os seus botões e com as nossas orelhas todas - vejam lá, vejam lá, já se diz merda na televisão.... Era o Pinheiro de Azevedo e o "vão à merda" que ficou na história..
Não posso esquecer o puta, mas essa é de estimação, carinhosa mesmo. Puta chamou-me o JP nas escadas dos Três Pinheiros, no meu tempo de menina e moça, poucas horas depois de o ter deixado pendurado com um anel na mão para ir a uma festa de carnaval com a minha paixão do costume. Esse mesmo JP que voltei a ver há pouco tempo atrás e me disse que passaram vinte anos, mas não passou um único dia sem se ter lembrado de mim. Puta é assim como que um beijo no pescoço. Único, mas bom.
Faltava, nesta busca de memória digna de uma cantora alemã, o pintelho. Esse nunca mais se separará de uma taça de champagne. Tinha 15 anos quando fui ver o Exorcista no salão dos bombeiros. Era a mais nova da trupe mas quais vomitados em jorro, diabos nos sotãos, cabeças que rodavam ou padres pela janela. Nessa noite o que não me deixou dormir foi o não ter percebido o que era isso de pintelho que a outra tinha, logo no princípio do filme, dentro da taça do champagne.
E há calão que nem é mau, mas de que não gosto. Não gosto de porra. Não gosto porque não gosto. Tem um som feio, uns erres dobrados e ninguém consegue dizer "porra" sem primeiro vestir um casaco ordinário. Também não gosto de chicha.... Chicha... Este é, mesmo, o meu ódio de estimação. Chicha? E isso é o quê? Uma fantástica costeleta de novilho é "chicha"?? É das tais que doa a quem doer, acordos ortográficos incluidos, nunca por nunca vai entrar cá em casa...
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Este foi um escrito de catarse. De vez em quando preciso de as dizer, ou de as escrever, nem que seja assim, bem embrulhadas e disfarçadas no meio das luzes, para não sufocar.
Quando comecei a trabalhar fiz, tal como muita gente na minha situação, dezenas de defesas oficiosas. Dava-me um gozo imenso imaginar a minha mãe a ver-me, numa sala cheia de gente, a perguntar na frente de Sua "Meretríssima" - mas é verdade que ele lhe disse puta de um cabrão vou-te foder os cornos?
Sim, teria sido aí que ela iria ter a certeza que um marido faz muita falta a qualquer filha de educação esmerada...

2 comentários:

Anônimo disse...

Ah post dum cabrão... :-)

Teresa disse...

Gargalhadas e um beijo na barbatana que, apesar de tudo, isto é gente de respeito...