Andava no baloiço para a frente e para trás quando falou no filho. Filho? Nunca tinha ouvido falar de filho nenhum e estavamos juntas todos os dias já lá iam três anos. Sim, o meu filho, deve ter 27 anos e não o vejo desde os doze, pensei que sabia. Não, não sabia e quantas vezes tinha olhado para ela pensando o que sentiria por nunca ter sido mãe e não o poder ser.
Vive com o namorado ali ao fundo. Pernas tortas dos acidentes, costas remendadas, barriga a cair por cima das calças e um ar de quem decide o futuro do mundo assim que abre os olhos. Sobrevivente. Da vida, dos desamores, dos sonhos, do que não foi mas podia ter sido e de tudo o que já não espera mas acredita que um dia ainda venha.
Tem irmãs não sabe onde, outras de que não fala, e mais umas que nem sabe quem são. Sobrinhos, sobrinhos netos, funerais a que não foi, casamentos de que não ouve falar e baptizados de quem não sabe que nasceu. Também tem luzes de natal à volta das janelas e uma árvore de plástico entre a sala e a cozinha. Já comprou o bacalhau para a ceia e o vinho para o jantar. Não faltam as minis no frigorífico e não saio da minha casa que aqui é que estou bem, vamos comer e depois ficamos nos sofás da sala a ver no plasma da estante as festas dos outros.
Ele também é não assim. Está sozinho com ela e as garrafas que vai despejando tarde após tarde no café dos ingleses. Chega a casa porque tem de ser e chama-lhe canuca porque um dia se lembrou de o fazer e agora nem dá jeito mudar. Para eles, de mim, uma canção de natal
Ele faz o noivo correto
Ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia
Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho...
(Chico, claro.)
e até para o ano, no mesmo sítio, com o tecto ainda lá em cima.
Um comentário:
Não ter laços é mau mas não é o pior. O pior é ter de os cortar. A gente habitua-se a dar desconto a isto, depois aquilo e depois é tonelada para cima e a mal se nota. Sobra o calo, que nos defende da dor permanente. E a normalidade de plástico, como a tal árvore, que os bezerros da fé têm sempre a medida do ouro que é cada um. Mas por vezes é tudo o que temos, tudo o que já não nos tiram, tudo com que podemos contar a sério, mesmo, para sobreviver à úlcera da nossa solidão interior: natais de plástico e os calos. Sobretudo os calos.
Parabéns pela sua casa. Cheguei aqui pelo Aspirina B para a ver despir-se. Vá-se despindo que eu vou voltando.
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