Tempo de viver

Complicado. Para mim é mesmo complicado conseguir fixar que aquela senhora é a prima do dono do café e é tia do rapaz com quem falámos ontem à saída do jardim. Aquele que tem a irmã na Suíça, que teve gémeos. Não te lembras? Não.
Das pessoas lembro, das relações parentescas não consigo. Acho complicado, para mim é complicado. E ali em particular deve ser mesmo pior que noutras zonas. A terra é pequena, no meio da serra, e quase toda a gente é prima, ou cunhada, ou compadre, ou tia, afilhada. Depois são os da terra e os que emigraram e os que voltaram e os que só no verão voltam e os que nunca foram mas por isso sentem que deviam ter ido e voltado.
É complicado, para mim é complicado, ou então sou eu, que como sou de fora não tenho estas ligações. Afinal tenho, sou sobrinho. Aliás, segundo sobrinho. São tios da minha mãe. Ela é que é tia da minha mãe, tia directa. Ele é casado com a minha tia. Da minha mãe. Complicado, avisei.
Conheço as pessoas mas não sei relacionar entre elas quem é o quê a quem. Incluindo o Ti'Aniceto, de quem sinto mais a falta porque já não está lá onde sempre viveu.
Era mais simples porque era só Ti'Aniceto, sem ter de identificar os respectivos sobrinhos e restante árvore familiar. O Ti'Aniceto é daquelas pessoas que se sente a falta porque nunca se fizeram sentir presentes. A vida dele era simples. Depois de anos onde se consumiu nas minas de volfrâmio, estragando as mãos e os pulmões, o Ti'Aniceto "andava" por ali. Viúvo (provavelmente desde que nasceu, porque nunca soube de alguma saia na vida dele), partilhava alguma da vida doméstica com a irmã e o cunhado que viviam na casa do lado. A dele era inconfundível, era aquela das escadas, junto ao rio, a terceira de branco a caminho da represa. Casa onde, como ele gostava de dizer, lá tenho as minhas coisinhas e onde faço tudo. Para comer sim é com a irmã e o cunhado mas de resto é na minha casinha.
De Verão ou de Inverno acordava com o sol, e deitava-se com ele também. Não me parecia que mesmo que pudesse fosse grande fã de jacuzzis e coisas do género, nem simples banho de imersão sequer. De vez em quando um duche dava jeito, mas sentia-se mais próximo da celha grande que enchia de água fria e onde se encharcava de água e sabão, molhando tudo à sua volta num raio não desprezável, mas cujo resultado final era a limpeza de toda a área e depois tudo escorria para a "loja". O acordar cedo era um hábito antigo e que não se justificava agora, mas ele também não tentava justificar ou explicar porquês. Fazia a sua malga de sopas de pão e lá ia ele até à sua pequena horta, mesmo à beira rio, naquele espaço onde agora está o caminho marcado, aquele que vai dar à ciclovia.
E o seu dia era assim, passado ente a horta, pequena, mas de onde trazia quase tudo para casa e o arranjar comida para os animais que iam variando de ano para ano em género e em número. Curiosamente não tenho na memória referências do almoço, mas é inesquecivel a malga de sopa do jantar. Enorme. Nã, dizia ele, pá janta o que me sabe bem é mesmo a minha sopinha. Com pão claro. Às vezes um café. E já não havia sol, nada mais para fazer, e cama.

Este ano voltei de lá com a mesma sensação. Faltava o Ti'Aniceto. Apesar de já faltar há algum tempo acho que cada vez percebo melhor a falta que faz uma pessoa que quase não está lá naquelas horas de vida em conjunto habituais, aos serões, no ir ao café, no ir às festas de verão, uma pessoa que quase não falava se ninguém lhe dirigisse a palavra ou um aceno de longe. Como se sente a falta?

Ele estava lá sempre. Com uma calma e um saber únicos. Não gritava, não se irritava, não corria, não... Esta era a sua vida, tratar das suas coisas, sempre activo porque sempre havia que fazer, mas sempre sabendo que era assim a sua vida. E tinha a grande sabedoria de a viver e a aceitar e a dar a todos que se cruzavam com ele.
Este ano, sentado a olhar o rio, senti que sentia o mesmo que toda a simplicidade do Ti'Aniceto. Vivia dia a dia e feliz o seu simples e único tempo de viver.
Ti'Aniceto porque era tio de... Isso é complicado. Muito complicado. Em especial para mim e ali ainda o é mais porque a terra é pequena e todos são família.

8 comentários:

Marias disse...

" a loja", tem graça falares nisso. Nas casas do norte há as lojas , que é a arrecadação ou adega. Na da minha avó era adega, com enormes pipas e lagar, cabos de celolas e batatas e eu em pequena achava estranho ninguém lá ir comprar nada...

gaija do norte disse...

obrigada, santo, acabaste de me esclarecer uma grande questão da humanidade. até hoje nunca tinha percebido porque é que o gaijito não consegue encaixar os parentescos. afinal, é mais uma coisa de gaijo...

CybeRider disse...

E pronto. Lá dou o meu dia por muito bem empregue.

(Fogo, pá!!!)

Nunca mais me tinha lembrado do meu Ti'Tónho, lá nas brenhas do Alentejo...

Mente Quase Perigosa disse...

Lindo, Santinho.

(Mas lá porque não gostas de mim, não havia necessidade de me pores de lagrimita ao canto do olho...)

calamity jane disse...

Detesto ser repetitiva mas... lindo mesmo, Santo!

Teresa disse...

Santo, já te disse hoje que gosto muito de ti e sei porquê?

O Santo disse...

babei... bue

Marias disse...

Agora podia-se pôr o John Denver e os "Country Roads", vocês gostam mesmo do campo...