Já tentei começar a escrever isto de muitas formas mas a melhor é ir directa ao assunto. Hoje, depois de ter passado anos enganada, percebi que não tenho mau feitio.
Não, não tenho, e a graça é que até eu pensava que tinha.
Eu sei como sou capaz de explodir numa fúria quase animal despejando sem freio torrentes de palavras terríveis. Eu sei como fico perdida de raiva, como sou capaz de agredir desalmadamente e de ferir sem dó nem piedade, mas, percebi hoje, só o faço se tiver razão para isso, porque só estar magoada não me chega. Posso ser um pouco, digamos que, colorida nas minhas demonstrações de desagrado, mas não tenho mau feitio.
Gaija que é gaija já ouviu pelo menos uma vez dizerem-lhe que tem mau feitio e provavelmente, tal como eu, viverá convencida que não é propriamente flor que se cheire, mas descansem as vossas consciências - nós somos é demasiado tolerantes.
O processo é simples e bem conhecido de todas. A nossa cabecinha, esperta e gira, nunca pára de pensar e os dois e dois que vão dando quatro vão sendo somados e postos na coluna do Haver. Normalmente deixamos passar sem reacção de maior. Somos tolerantes, já o disse, e prezamos o bom entendimento entre os homens e sobretudo com os homens. Mais propriamente com o nosso. Vão uma, vão duas, vão três, vão dúzias de coisinhas que até não nos agradam por aí além mas nós, contas feitas prova dos nove tirada e resultado à vista e sem erros, arquivamos. Precisamos de saber que não nos deixámos enganar, que estamos atentas, mas não precisamos de esfregar cada prova da idiotice masculina na cara do próprio, até porque a maior parte das vezes não percebem e só estamos a ter trabalho.
Desta forma inteligente, que nos poupa fôlego e nos permite viver com alguma tranquilidade o dia a dia, lá vamos seguindo com as nossas vidas, perdoando cá para dentro mas não esquecendo. Não esquecendo nunca.
E um dia, porque há sempre um dia, acontece mais uma. E nesse dia, quando mais uma vez tentamos arquivar, aparece o aviso que tão bem conhecemos - memória cheia, necessário apagar mensagens.
Apaguemos pois.
Está certo que até pode ter sido só uma coisinha de nada, uma meia fora do sítio, uma desculpa esfarrapada para o atraso habitual, um hálito a adega depois daquela reunião de horas onde se discutia o futuro da espécie, um telefone sem bateria, mas pronto, já não é possível arquivar. A partir daí sabemos bem o que acontece. Começamos por ir buscar a mais recente ofensa só para arranjar um bocadinho de espaço mas assim que a abrimos e nos voltamos a lembrar é difícil parar. A esta mentirinha de hoje juntam-se as outras dezenas, aquelas todas em que fizemos cara de parvas e acenámos que sim, pois claro!, as faltas de respeito aqui e ali que passaram incólumes, as pequenas traições, os abusos, todos os tais pecadilhos perdoados mas não esquecidos. E a nossa fúria vai crescendo e crescendo. E quanto mais cresce mais vontade temos de limpar o arquivo todo e fazemos questão de ir até ao fundo e acertar finalmente as contas penduradas no Haver.
Nessas alturas cada uma reage à sua maneira. Há as que são fãs dos venenos, outras preferem fogo lento, outras usam punhais, pistolas, jarras de porcelana, pratos de macarrão (sempre tive vontade de experimentar esta modalidade) ou copos de bebidas pela cabeça abaixo, queixas ao patrão, alianças estratégicas com a outra, mas para mim chega-me uma boa discussão.
Começo devagarinho, uma coisa aqui, outra ali, mas vou perdendo o pudor à medida que vão insistindo que as minhas somas estão erradas e aquilo não é um quatro mas um cinco. Nessa altura está o caldo todo entornado. Perdoo tudo, menos que me tentem fazer passar por burra. Pôr em dúvida a minha capacidade para avaliar, para analisar dados e extrair conclusões deixa-me fora de mim. E aí sim, a tempestade abate-se em toda a sua magnitude.
Mau feitio? Não, mau feitio era se não tivesse capacidade de arquivo, se reagisse assim que me sinto dorida e se ao minimo toque avançasse mesmo que sem razão ou para lá da razão.
Não sou assim. Sei isso agora, porque também só agora me vi danada sem razão.
Tentei, juro que ontem tentei. Estava danada, a tal memória cheia, e preparei-me para mais uma expedição punitória. Havia de arranjar qualquer coisinha para compor o ramalhete e atingir o ponto de ebulição.
Sim, havia muita coisinha, mas nada dali. Arquivos antigos que ainda estavam por lá perdidos mas com aquela etiqueta, nada. Nadinha. Mesmo aqueles dois e dois estavam difíceis de dar quatro, não era lógico, mas como me tinha deixado preocupada convinha fazê-lo sofrer um bocadito. Precisava de qualquer coisa mais que tivesse deixado passar para ajudar naquela festa. Mas nada, não encontrava nada. Decidi pensar em coisas que habitualmente me aborrecem, assim como que para adubar um bocadinho a minha zanga na esperança que crescesse, só que nada resultava. Nada resultou.
Acho que quando o telefone finalmente tocou eu ainda consegui dizer Estou danada contigo!, mas lembro-me bem que segundos depois estava a rir.
Hoje pensei nisto. Eu estava danada e não discuti. Afinal não sou uma gaja chata, impulsiva, que embirra por tudo e por nada, incapaz de se controlar e com alterações de humor.
Mau feitio? Não, afinal não tenho mau feitio, tive foi demasiadas pessoas mal feitas na minha vida. Não me dêem razões que, de certeza absoluta, nunca me irão ver soltar os cães.
Nunca nos irão ver a nós, gaijas, soltar os cães.
Há 2 anos
19 comentários:
Está profundo! Fez-me inveja, que é uma coisa feia. Quase me fez sentir culpado de ser gajo e ter uma mulher. Coitadinha... Ou antes de mim, que sou um estafermo e ela não merece.
Obrigado. Partiu-me a cabeça, vou atá-la e volto.
Partiu? Não se nota nada...
Garanto que sim. Deu-me que pensar. O que no meu caso particular é invulgar a esta hora.
(Eu também pedi, Chefa...)
E os tubarões? Também não soltam os tubarões?
O quê??? Não houve sangue?!!! (Estarás a perder qualidades?)
(Já publiquei)
Li e também gostei da tua reflexão. Concordo integralmente contigo. Sempre que nos zangamos, explodimos e dizemos o que queremos e não queremos, temos razão e, sim, somos muito tolerantes. Demais. A tal caixa do Haver enche-se num abrir e fechar, e quando a abrimos, há que esclarecer o que nos vai na alma. Na maioria das vezes para nada, nunca perecebem.
Irra.... que é teimosa.
Hum, com certeza que os homens também têm um arquivos desses, o que eles fazem bem melhor que nós é apagar e pronto.
Não há nada pior que numa discussão que começou por causa de carne, ir buscar-se peixe.
Cada coisa a seu tempo.
Não me parece que chamar a atenção na hora seja ter mau feitio ou ser intolerante.
Mau feitio é guardar para saber que se usará mais tarde.
Eu, já me deixei disso. 8 anos com o mesmo homem, que como eu lá se desalinha de vez em quando. Fala-se e pronto. E assim, 2 mais 2 são e serão sempre quatro.
também não soltava os cães mas quando abria o arquivo era cada manada de elefantes em fúria que vinha por ali fora...
Teresa - parece-me (do alto dos meus 58 anos feitos em 13) que o problema das pessoas que se fazem a si próprias é que ficam mal feitas e isso ás vezes nem é sua culpa directa. São questões afluentes... a)JCF
Pode ser em porcelana?
só da mais fina... ou cristal!
(são os meus preferidos, os de cristal finíssimo...)
(cristal finíssimo? Bom, pelo menos fica-se com a certeza de que o interesse é mesmo meramente decorativo...)
A minha net (finalmente!) já assapa... Volto dentro de instantes, ou minutos, ou uma hora ou duas, para responder aos comentários.
(tou pra ver a chefa a assapar... sai da frente!)
É o efeito cumulativo, o mesmo que explica o facto de uma sardinha poder pôr um burro abaixo.
A sociedade portuguesa,em geral, e os homens, em particular, conspiram contra as mulheres: exige-se-lhes que sejam inteligentes mas, quando elas exercitam os neurónios, os machos que as consideravam e admiravam, à distância, não o aguentam, na proximidade e na intimidade. A superioridade, antes apreciada, passa a ser incómoda e indesejada.
Por outro lado, os mesmos machos não suportam uma mulher submissa que consideram entediante e, por si só, motivo justificativo para procurar o complemento noutra ou noutras.
Assim que, só mercê de um tremendo esforço de lucidez, a mulher consegue eximir-se a ser odiada ou a ser, simplesmente, a outra.
E tudo isso, num processo extremamente perverso, de perdas acumuladas, que se não sentem (porque graduais), mas que se vão sentindo e das quais a mulher só se consciencializa quando está nos antípodas de si própria.
Nesse estado de depauperação, apenas duas vias: continuar a anular-se ou dar o grito do ipiranga, com muito mais factores a conspirarem para que prevaleça a primeira hipótese.
Soluções?
Nunca uma mulher deve "servir" a excelência. Quando o faz, arrisca-se a que, quando servir o "bom", este seja encarado como "mau".
E subir, mas subir muito e desde sempre, a sua fasquia de exigência. Nada de afrouxar a rédea: só os puro-sangue, educados e disciplinados, ou as pilecas não se aproveitariam do facto. E, se uns são elementos de ficção, a quem servem os outros?!
Infelizmente, constata-se, com frequência, que às mulheres cabe a maior fatia da responsabilidade da degradação da figura feminina. Por "tansice" crónica!
Anónima, partilha connosco como se manifesta esse problema da proximidade e da intimidade com mulheres inteligentes que eu nunca o senti e só me tocam dessas...
Pôrra Teresa...
Este post podia ter sido escrito por mim.
Pelo ideia geral e pelos particulares... todinhos.
Salut!!!
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