Bohemian Rhapsody

Há sinais que são mais claros que um sinal de Stop, que esses nem sempre são claros e nem sempre estão no sítio onde devem estar mas isso a Peixa explica, e assim que entrámos lá e eu ouvi aquelas vozes esganiçadas a gritar Is this the real life? Is this just fantasy?, a mesma canção que estou a ouvir agora, a canção que já não suporto porque elas a ouvem trezentas e vinte e duas vezes por dia, devia ter saltado de imediato nos versos que conheço de cor e cantado a plenos pulmões Just gotta get out, just gotta get right outta here, porque só nos podíamos ter enganado no sítio tal como eles se estavam a enganar na canção. Nós devíamos era estar a ouvir o Tom Waits a dobrar o Capitão Gancho que, sentado ao piano, cantava Did the devil make the world while god was sleeping enquanto a Irmã Mais Feia servia copos ao balcão. É que nós tínhamos acabado de entrar na Taverna da Maçã Envenenada e o mais seguro era sair dali de fininho antes que alguém nos visse. Mas não saímos.

Comecemos pelo princípio que é assim que todas as histórias, mesmo as de ogres verdes e simpáticos, começam. Há alturas, poucas, raras, em que os planetas se alinham de uma forma especial sem que qualquer astrónomo ou mesmo astrólogo o consiga prever e eu e a Peixa temos simultaneamente uma pequena abertura no tempo de mães a todo o tempo que nos permite sair juntas para beber uns copos. Ontem foi uma dessas noites mas soubesse eu ontem o que sei hoje e tínhamos ficado em casa a jogar crapot. Too late, my time has come, e lá estou eu a sair de casa com uma gaija de cabelo ainda a escorrer água e que levava vestido, para uma noite que eu sabia como estava a começar mas que não sabia como ela a ia acabar, que eu não me meto em confusões, mas dizia eu que estávamos a sair de casa e ela levava vestido o soutien da minha filha mais velha e a blusa da minha filha mais nova, santas meninas que são maiores que a mãe. Mas vá, as cuecas e as calças eram dela e eu obriguei-a a repetir, várias vezes, que se mãos menos próprias tentassem chegar-lhe a roupa ao pêlo, ou tirar-lhe a roupa do pêlo, que para o que interessa a ordem é-me indiferente, a inocência das peças das crianças seria devidamente salvaguardada.

E agora voltemos outra vez ao princípio que não era o princípio. Acabámos de chegar ao sítio dos copos, tenho umas vozes a rebentarem-me os ouvidos na tentativa infrutífera de imitar os agudos do outro o que, ao contrário do lado para que sopra o vento, really matter to me, mas já que ali estávamos e estávamos podíamos ficar um bocadinho e beber o tal copo. Eu quero um gin, se faz favor. A cabeça ao lado levanta-se com dificuldade do braço que a sustentava e num inglês entaramelado pergunta-me o nome. Eu sabia que não devia ter respondido, eu sabia, mas até os grandes artistas cometem erros. Tereza. Na cena seguinte, abancado no sítio que até aí tinha sido da Peixa, estava o dono da voz que tentava que eu repetisse o nome dele, como se alguma vez, com álcool ou sem álcool, eu conseguisse dizer um nome sueco, que insistia em perguntar-me se eu era espanhola, que me explicava onde era a Suécia, que gritava que ainda não tinha conseguido nadar por causa das big waves,  e que teimava, sabe-se lá porquê, em dizer-me que estava de férias sozinho. Pronto, está bem, vou perguntar-lhe qualquer coisa, coitado, está a esforçar-se e nós temos fama de sermos simpáticos. Que fazes na vida? I manage two factories. De uma holding? Não, minhas, two steel factories. You know steel? Ups!... Steel?!!... Convém fazer, imediatamente, um apanhado da situação que o tipo é dono de duas fábricas de aço. Ora portanto, o gajo até é giro, que é, e está bem vestido, que está, bêbado, muito bêbado, mas isso há-de passar-lhe, e last but not the least, é pessoa de posses. Tu pára Maria Tereza que estas coisas nunca te acontecem, a perfeição não existe ou se existe tu nunca a viste, portanto prepara-te para o embate. Enquanto isto, que eu penso rápido, o chuveiro de saliva ao meu lado ainda ia no steel, you understand? like this, steel, eu understendo-te perfeitamente, steel, like you, que quem está como o aço és tu e não esse tubo de latão do varandim onde bates como se não houvesse amanhã. E aí cometi o segundo grande erro da noite e tentei ter uma conversa inteligente, às três da manhã, num bar, com um sueco a cair de bêbado. Ora, pensei eu, mas Peixa não me ouviu, primeiro porque não estava ali, onde raio andaria?, segundo porque nem sempre me consegue ouvir a pensar, e portanto Peixa não me pôde mandar um berro como costuma mandar quando eu insisto em tentar ter conversas inteligentes com eles, e eu continuei a pensar, o tipo não deve ser parvo, é sueco, de fábricas de aço eu não percebo mas sempre deveremos poder falar das últimas eleições na Suécia e dos resultados da extrema direita mas melhor teria eu feito se tivesse aberto a boca para lhe falar das gémeas suecas do Santo, que também é um tema que eu conheço bem, e que não teria feito com que a história que mete um boi um olhar e um palácio lhe assentasse que nem uma luva. Pronto, desisto, e só há um sítio seguro, a pista de dança que o tipo nem se deve conseguir pôr em pé.  Conseguiu, afinal os suecos são bichos manhosos, e num ápice eu estava a dançar o rock around the clock como em mil nove e trinta e cinco rezando para que ele não falhasse o passe e me conseguisse apanhar ou eu sairia dali a voar e atravessando pelo ar toda a sala mataria o armário da porta que ainda vai ser importante para esta história. Sim, que Peixa continuava desaparecida.

Suei, suei muito e quando me vi prestes a morrer de exaustão encostei-me ao balcão mais próximo e pedi-lhe uma bebida.  One cocktail? O gajo é doido, eu quero água, muita água, uma garrafa de água, duas garrafas de água, de litro e meio, please. E o esperado embate chega. Eu sabia que ia chegar. Ele pede a água, mete a mão no bolso das jeans, giras, saca um molhinho de moedas, pretas, e diz que não tem mais dinheiro. Não fiquei nem para lhe contar os trocos. Fugi. Tenho a certeza que ele se estava a preparar para me cantar I'm just a poor boy nobody loves me e eu ia ter que desatar a berrar mama mia, mama mia mama Mia, let me go portanto, num só movimento, arrebanho Peixa, por onde andaste Peixa?, casacos e carteira mas lá está o sueco com o nome impossível na nossa frente, a dança deve tê-lo acordado porque ganhou uma velocidade que não tinha antes, com uma mísera garrafinha de água na mão, 20 centilitros, melhor que nada, há-de servir para alguma coisa. Garrafa à boca. Um gole, dois goles e o terceiro ficou por dar que o tipo tira-me a garrafa e começa a beber também. Agora acabou mesmo, fica com a garrafa que eu não lhe toco mais, toma lá o meu email que duas fábricas de aço sempre são duas fábricas de aço e boas férias.

Carro. Casa. Peixa com aquele sorriso, aquele, na boca. Onde estiveste, Peixa? Eu??!!... Vozinha fina, aquela, e pestana a bater, eu estive cá fora a fumar ao pé de Pedro. Pedro? Sim, Pedro, o porteiro armário, dois metros de altura três de largura cara de mau, e Pedro deu-me uma coisa... Mão ao bolso e lá está, na minha frente, um origami. Pedro, o latagão da porta, esteve a fazer-te um origami???!!!!!..... E isso é um coração?? Olhos no chão, pezinho metido para dentro, aquele, voz sussurrada, isto não é um coração.... voz ainda mais sussurrada, isto são uns pulmões... os meus... pretos... mas vês? vês?, do outro lado são cor de rosa... ele diz que se eu deixar de fumar ficam assim, cor de rosa...

Deprimente é pouco. É certo que somos gaijas rijas e vamos conseguir sobreviver sem assombrações que metam suecos tesos e pulmões de origami mas eu vou passar a ouvir com mais empenho os Queen e tentar lembrar-me que nothing really matters /Anyone can see / Nothing really matters / Nothing really matters to me
Any way the wind blows...

2 comentários:

Mente Quase Perigosa disse...

Eu nego.
Nego tudo.
Lailaialai...

Fiu fiu fiu...

Sou eu a negar e a andar assobiando...

Teresa disse...

Tu sabes que eu tenho uma fotografia dos pulmões de origami, não sabes?!!...