E tenho andado assim, a acordar a estas horas improváveis

Dizem que as alterações do clima nos afectam sobretudo a nós, mulheres, e eu quero crer que têm razão. Aqui, neste Sul onde já quase nos esquecemos do feitio da chuva, onde o Sol insiste em brilhar e a relva está cheia de malmequeres, respira-se um ar de Primavera. E se toda a gente sabe que na Primavera se fazem limpezas, não há-de ser estranho que eu tenha passado o último mês a limpar. Foram as limpezas desta Primavera, da outra, da anterior, da que já não me lembrava. Limpei, limpei, limpei, limpei. Não ficou cantinho por virar, gaveta por arrumar, guardanapo de pano por corar, sapato por escovar, caixa de memórias por abrir. Saíram dezenas de sacos de lixo e muitos quilos de pó mas ontem cheguei ao fim. Da pior maneira, mas cheguei.
Ontem foi o dia dos livros. Estavam limpos, faltava serem arrumados. Eu sabia, bastava-me ter andado estes anos todos a observar de longe o lento Outono das estantes, que iria ser tarefa sofrida mas nem nos meus piores dias pensei que poderia ser tão mau. Eu sei que a culpa é minha, eu sei que vou ter de escrever cem vezes, mil vezes, em letras maiúsculas para não esquecer, NUNCA MAIS EMPRESTO UM LIVRO!, mas não tinha de ser castigada assim. É que eu gosto deles. Gosto de saber que os tenho por aqui, de os abrir, de os reler, de lhes olhar para as capas e de lhes lembrar as palavras e fico desesperada quando não os encontro. E não os encontrei.
Não encontrei nenhum dos três cafés do Álvaro Guerra, o Saramago, todo o Saramago, emigrou, o Sancirilo do Pires Cabral deve andar a fazer milagres por outros sítios, e desapareceu o O Meu Pé de Laranja Lima, velhinho, com dedicatória do meu pai na primeira página e a data esquecida do meu exame da 4ª classe. (Maldita a mão que o levou.) E tantos, tantos outros que me faltam. O John Le Carré quase todo, do Tom Sharpe restam dois e o Wilt não consta, do Evelyn Waugh foi-se o Scoop, o Ente Querido e o Reviver o Passado em Brideshead. A Sangue Frio, do Capote, encadernado a couro verde, deve estar desaparecido em combate, tal como todos os do Hemingway, os Vargas Llosa, o Cem Anos de Solidão, lido de seguida, pela primeira de muitas vezes, na rede do jardim, por baixo da romãzeira, na tarde da véspera do exame de Filosofia do 12º ano. Foram-se O Macaco Nu, do Morris, o Mitologias, do Barthes, A Peste e o Cadernos, do Camus e do Kafka nem o América, o livro inacabado que não deveria provocar grandes paixões, respondeu à chamada. Os dois volumes do Guerra e Paz, que desde os meus quinze anos correram as várias prateleiras com uma fita de seda vermelha atada na página onde fiquei, devem ter desistido de algum dia serem lidos e foram para outras paragens, talvez acompanhados pelos outros clássicos em falta já que o Père Goriot, A Mãe, o Rei Lear e o Dr. Jivago estão também desaparecidos. Suspeito, mas isso é coisa minha, que a culpa deve ser do Pepe Carvalho. O tipo apanhou-me distraída e acendeu a lareira com livros, como lhe é costume, mas desta vez usou os meus. A seguir pirou-se, talvez atrás dos Pássaros de Bangkok, porque do Manuel Vasquez Montalban não encontro um único policial. Também não encontro o Bruce Chatwin, mas esse deve estar a fazer mais uma viagem e tenho esperança que volte a bom porto.
Na Banda Desenhada é melhor não meter muito o nariz, que a razia foi ainda maior. O Astérix o Gaulês, o primeiro de todos, foi-se, e A Foice de Ouro foi-se também. Os volumes encadernados das revistas do Tintin, do 1º ao 9º ano, que as outras, espero eu, ainda estão em monte na garagem da minha mãe, foram ali e vinham já mas este já tem mais pó que a múmia do Tuntankamon. E, por falar em múmia, também não aparece As Sete Bolas de Cristal e até o Huckleberry Finn teve a ousadia de deixar o Tom Sawyer sozinho na estante.
Tantos livros que me fazem tanta falta. Eles são parte do meu mundo e hoje, que sei que não os tenho, sinto que me levaram um pedaço de mim. E serão estes, os desaparecidos, os primeiros a serem comprados porque me fazem muito mais falta os livros que já li do que aqueles todos que nunca entraram na minha vida.

Ou então.... Parece que estamos quase no Natal, não é? Se quiserem, se tiverem a gentileza, a simpatia, a vontade de me verem feliz, podem fazer uma colectazinha e oferecerem-me alguns, não podem?

(Voltei.)

27 comentários:

Visconde de Vila do Conde disse...

Voltou!

(não quer que eu lhe ofereça livros, pois não?...)

Teresa disse...

Voltei!

(deixa-se estar sossegadinho, está bem?...)

Rosa Negra disse...

Já tinha saudades de a ler :)

sem-se-ver disse...

1.
mas como perdeste/emprestaste/não te devolveram esses livros TODOS?? tás/tavas parva??? NUNCA SE EMPRESTAM LIVROS!!! salvo em sistema de requisição de biblioteca com tlf para contacto e multa para os prevaricadores quanto a prazos de devolução!!

2. e agora tb te armas em fina? isso é resposta que se dê ao 'conde? CLARO QUE TE BATESTE E MUITO BEM para que te ofereçamos livros. está anotado!!

3. desses todos ofereço-te o cem anos de solidão, seja pelo livro seja pela história que contaste.

(filha, escusas de meter inbeija ao pessoal, que esta manhã ainda teria dado para ir tomar a bica à praia, mas agora tá tempo de caca)

bjoca

Teresa disse...

Rosa Negra, obrigada.

Teresa disse...

SSV, estes são aqueles a que notei a falta, faltam os outros todos. Falta o Mentira, do Enrique de Heriz, falta um outro de que nem lembro o nome, faltam tantos que nem quero pensar - Topkapi, colecção Vampiro quase toda, os livros do Chico Buarque, o da filha do Vinicius, os policiais da Caminho, a ficção científica, tanto livro de que gostei e agora não tenho. E sim, a maior parte foram emprestados. neste momento tenho 4 por fora - acho que não perdidos - e dois, o teu e o da Peixa, para devolver. Mas tenho dúvidas que volte a sair qualquer outro cá de casa.

2. O Bis sabe que merece a resposta que levou. A acho que tu também sabes porque tenho medo, muito medo, das escolhas dele.

3. Cem Anos de Solidão? Muito obrigada, SSV. Vou já começar a procurar a árvore genealógica das personagens que fiz na última vez que o li (não, não foi na véspera do exame. Dessa foi de enfiada mas o exame, talvez por isso, correu-me muito bem)

$. Praia sim. ESTÁ UM LINDO DIA DE PRAIA!
(tu cala-te, que gosto de os ver com inbeja...)

bjs

sem-se-ver disse...

olha, oh teresa, isso já é livro a mais. colecçoes completas? nah. pq nao se emprestam colecçoes completas a ninguem. quero dizer: tens a certeza que nao teras uns caixotes com livros enfiados nao se sabe onde, garagem da cada da mae ou de um amigo etc? procura bem.


(nao me estou a furtar à prenda prometida, que já está decidida)

sem-se-ver disse...

tu tens um livro meu? eu emprestei-te um livro? qual??



(estou a rebolar-me a rir)



sério, nao lembro/ava!! qual é?

sem-se-ver disse...

puxando pela memória:


foi qd estiveste no hospital, n foi?


mas n me lembro qual.




(despiste+pdi=ssv)

Teresa disse...

SSV, completa completa não era, deixa-me exagerar um bocadinho, mas para cima de cem livros da vampiro tinha de certeza. E a teoria do caixote perdido dá-me alento mas duvido.
Sabes que consegui perder um caixote inteiro de livros? Tinha dois com livros de Direito que já não queria - tá tudo na net...- e a Peixa prontificou-se a entregá-los à biblioteca da Universidade. Um deles, inteirinho, desapareceu...

E não, não tenho um livro teu. Nem um dvd. O Fim da Aventura? Ná. Nunca ouvi falar...

sem-se-ver disse...

ah sim esse!!! :):):)

(oh oh, nem penses, que esse livro diz-me muuuuito!)

(tb tens o dvd? desse? ai que estou perdida!)

Mente Quase Perigosa disse...

(Olha que estava como a SSV a dar voltas ao miolo a pensar que livro te tinha emprestado mas depois o Tico parou de espancar o Teco e lembrei-me!)

Mente Quase Perigosa disse...

Estava aqui a pensar que tenho a mesma edição que tu d'O Meu Pé de Laranja Lima, mas acho que não tenho coragem de to oferecer... Sorry...

Mas escolhe um do Vargas Llosa que te ofereço eu no Natal. Pode ser a Tia Julia? Pode?

Anônimo disse...

Pela parte que me toca o que lhe vai trazer o Menino Jesus é um aluquete.
Para a porta ou para a grade das estantes, tanto faz.
Mas com o púlico que frequenta as suas paragens, parece-me o mais sensato.
Oferecer-lhe um livro, depois do que li, é oferecer o ouro ao bandido, ora.
A escolha da cor pode ficar ao seu critério.

Maria Helena

Teresa disse...

A Tia júlia, Peixa? Claro que pode!! É só o meu preferido.

(aguenta os cavalos que o teu ainda não o li...)

Teresa disse...

Maria Helena, obrigada pelo aluquete (já vi que é do Norte...) mas provavelmente terá o mesmo fim que o das grades das portas - a caixa das ferramentas.

Essa ideia de trancar os livros fez-me lembrar uma história. Há uns anos um amigo do meu irmão veio passar uns meses a minha casa e o quarto dele era no "escritório". Um dia cheguei e ele estava feliz porque tinha "arrumado tudo". Pois tinha... Tirou os meus livros todos das estantes, empilhou-os no chão num enorme vão de parede, pôs-lhe as estantes na frente e enfeitou as prateleiras vazias com fotografias. Segundo ele me explicou "aquele livro todo cê já léu, é só poeira, não precisava de estar ali por isso arrumei"...

Anônimo disse...

tão prático, né? Eu então pus a bd toda (menos dois) ali numa arrecadação sem chave a ver se me vão levando alguma coisa que assim alivia a carga. E os romances históricos também a menos de um ou outro. E fotocópias de tantos livros técnicos. E ainda assim me sobra em casa uma parede inteira corrida dde livros e pergunto-me como vou fazer. Faço esta pergunta há meses e ainda não tenho resposta, mas lá terá de ser.

piu

calamity jane disse...

O Wilt fica então a meu cargo. Ou então um dos Astérixes. Em francês :-D

Marias disse...

Ok, dou-te um cheque da Fnac pelo Natal. Os meus gostos não são nada iguais aos teus, senão dava-te os meus, os quais na maioria estão em caixas na arrecadação, pois tb cheguei à conclusão que aqueles livros de bolso da vampiro, etc, são um ninho de ácaros e pó. É eu também pus os livros fechados em armários e fotos e bibelots no armário. Estou à espero dos livros digitas, já sei que há mas é caro.

Marias disse...

*digitais

Teresa disse...

Olá z.

que dois guardaste?

Teresa disse...

Gabs, os da colecção Vampiro podes dar quase todos. Principalmente se forem do Rex Stout, Erle Stanley Gardner, Raymond Chandler, Ellery Queen, A. A. Fair e George Simenon.

Teresa disse...

Olá CJ.
Em francês não é preciso porque esses não consegui eu perder...

Anônimo disse...

guardei o Incal e um de fractais. Mas quer dizer os outros ainda estão ali ao lado numa arrecadação sem chave, talvez.

E tenho amor por muitos deles mas tenho de paassar à fase dos amores imateriais, vai-se o significante fica o significado.

A não ser que venha uma grça do Céu mas parece que o crédito anda mal parado.

Mente Quase Perigosa disse...

Gosto quando me facilitam a lista de Natal! É que gosto mesmo!

(os meus cavalos estão como os do cargueiro: sogaditos e não vão a lado nenhum!!!!)

Anônimo disse...

Teresa

Só para te fazer inveja, tenho os da Colecção Vampiro todos, aqquiridos sabes onde ? Na Casa Rádio na Figueira da Foz e na Pérola Branca, que fica em Coimbra, em S.José, caso não te lembres.

Teresa disse...

A colecção toda? 703 livros? Então és um dos 4 portugueses que a tem.
Eu tinha bastantes mas nunca cheguei perto disso. O meu pai tinha muitos e eu fui comprando também. Na Casa Rádio, claro, e na Pérola Branca que sei muito bem onde era (é?). Nos anos todos em que andei de comboio comprei nas estações e aqui, em Albufeira, durante umas férias em que devia estar pouco sociável, tinha uma rotina gira - todos os dias de manhã comprava dois livros da Vampiro, um para ler na praia e o outro para ler à noite em casa. Não faço a mínima ideia para onde terão ido todos eles...