Eu, pecador, confesso sempre...




Sempre me fascinaram os temas polémicos, nomeadamente aqueles para os quais da discussão nunca nasce a luz.
Não falo da Criação do Universo, da existência de Deus ou do caso das escutas em Belém (só para manter a coisa no domínio do místico e assim). Falo de assuntos cujo esclarecimento depende, em última instância, de um consenso quase impossível de obter.

Claro que a ilustração desta posta já levanta a ponta do véu (adoro estas frases feitas de ampla divulgação, facilitam imenso a vida à malta que escreve e à que lê), permitindo um vislumbre de uns dos tais temas que me atraem precisamente por se revelar quase sempre inócuo o respectivo debate.
Sim, a questão da fidelidade. Aí está algo que mexe de forma distinta com cada um de nós, na cultura, na sensibilidade, na religiosidade, na experiência de vida e em tudo o que nos inclina para esta ou aquela posição (passe o trocadilho subjacente) ou mesmo para uma actuação que, de um modo geral, é tida por censurável.

De pouco interessa a minha opinião na matéria, acreditem, tendo em conta que este fascinante silenciador de mesas de café (sobretudo as que incluam pessoas sem pila) em nada depende das opiniões individuais seja de quem for. Quero com isto dizer que qualquer conversa séria acerca da cena acaba por colidir com uma reacção extrema por parte de qualquer interveniente na mesma, precisamente por se enquadrar numa forma específica de sagrado que é aquela que diz respeito às nossas convicções instintivas (e algumas racionais, também).
E não existem duas interpretações exactamente iguais acerca da fidelidade e das suas motivações ou, pelo contrário, das múltiplas tentações que a ameaçam.

Certa é a perturbação global que o conceito em si parece acarretar, bastando para isso deitarmos uma vista de olhos para a multiplicação de crimes passionais, de divórcios com base no adultério provado ou de depressões directamente provocadas pelo conflito interior (e não só) em que mergulha a maioria das pessoas quando apanhadas no vórtice deste furacão emocional.
O ciúme, o principal sustentáculo prático da contestação enérgica à infidelidade, alimenta sozinho todo um desvario que se apodera de quem se sente ou se sabe "traído" (as aspas visam apenas relativizar o termo, pela sua carga tão pesada, e não minimizá-lo, por respeito a quem sinta as coisas dessa forma).
É impossível abordar a (in)fidelidade sem incluir o papel desse sentimento inexplicável à luz de qualquer lógica razoável mas presente por inerência em qualquer conversa ou pensamento acerda da questão.

A questão é a que nos confronta quando tentamos perceber porque somos ou não fiéis a determinada pessoa. Para alguns é uma opção inevitável porque sim e não carece de explicações, nem que seja apenas sustentada pelos dogmas românticos mais tradicionais. Para outros, mais existencialistas, é um absurdo que assenta num conceito medonho de "propriedade" de alguém, de uma autoridade sobre o corpo e as decisões de outrém que amor algum pode justificar.
E entre estes extremos opostos podemos encontrar uma gradação infinita de escolhas que derivam tanto da força das circunstâncias para os que falham no cumprimento do alegado dever de parceiro numa relação como da determinação dos que conseguem (sim, ainda deve haver uns quantos) manter-se firmes na intenção de não falhar ao compromisso que pauta a maioria das ligações amorosas entre as pessoas.

Depois ainda entra a jogo a dificuldade de discernir entre o certo e o errado nas opções disponíveis, sobretudo para as pessoas sem um juízo moral, sem um condicionalismo religioso ou outro que lhes facilite uma decisão na matéria. Não é pacífica, tal definição, quando pensamos a coisa em termos românticos e depois a avaliamos do ponto de vista mais isento que recorre aos factos (a infidelidade às escondidas também vale para a contabilidade da realidade tal como é e sempre foi) para provar uma tendência mais ou menos generalizada para "pecar" dessa forma.
Tudo isto mais o que faz parte da nossa reacção instintiva, a tal que o ciúme instiga e nem sempre se coaduna com a nossa posição teórica, eventualmente muito liberal, acerca da coisa.
Isso ou instinto de posse ou seja o que for que nos conduz ao putedo quando nos sabemos (ou julgamos) "traídos" ou, pelo contrário, nos permitimos "trair" alguém.
E claro que o conceito de traição dependerá em absoluto de contornos tão variados como o da verdade exposta a nú ou o das motivações desse acto que tanta celeuma e desfechos negativos tem provocado ao longo da História...

Teria que arrastar este lençol até um ponto insustentável para poder adiantar algum contributo para o tal consenso que me cheira impossível, mas queria apenas deixar-vos umas pistas, um ponto de partida para a reflexão acerca de algo que podemos sempre considerar secundário por comparação mas acaba por estar presente na nossa vida e nas dos outros em muito mais ocasiões (mesmo as não consumadas) do que nos atrevemos a admitir.


E se assim se justificar, não me importo de escrever mais alguma coisita...

17 comentários:

gaija do norte disse...

intriga-me o conceito de posse em qualquer relação e se nele está implícita a fidelidade, nunca fui fiel. nunca me senti dona de ninguém (a ideia é absurda) e nunca permiti o contrário. a fidelidade, para mim, uma gaija simples e rural, está no respeito e na verdade e tudo o mais que se possa dizer serve apenas para complicar.

shark disse...

Respeito e verdade parecem-me dois pilares do conceito, concordo contigo.
Da mesma forma rejeito a ideia da posse.
E não adianto mais porque não pretendo, de todo, complicar (com os meus considerandos de flor de asfalto complexa...
:)

gaija do norte disse...

ó tubarão, sabes como gosto de sumariar... expõe os teus considerandos à vontade. prometo que guardo a sachola e que uso o ancinho :)

shark disse...

(E o rolo da massa?)

gaija do norte disse...

(isso também se usa na agricultura???)

shark disse...

(não sei. nem quero saber...)
:)

gaija do norte disse...

pois... tu escreves postas mas de alfaias percebo eu!

Mente Quase Perigosa disse...

Uiiii, Bruce... Nem sei por onde começar...

shark disse...

começa pelo princípio, Peixa, para não te baralhares...
:)

Mente Quase Perigosa disse...

Mas o problema começa mesmo logo no principio.

Ou seja, começa no conceito.

O que é, ao fim ao cabo, a fidelidade?

É que esta questão não é uma questão de preto ou branco.

shark disse...

pois não, daí eu ter investido neste tema.
em busca dos cinzentos...
;)

Mente Quase Perigosa disse...

Olha, vou dormir sobre o assunto que eu hoje é mais tradução de contratos e pouca veia de inspiração.

Dorme com os anjos.

Bjs

Anônimo disse...

E porque é que o conceito de fidelidade é (quase) sempre limitado à relação entre duas pessoas?
Só se tem sentimentos de posse ou ciúmes ou mais qualquer outro em relação a pessoas? Em relação aos filhos (apenas um exemplo) não há posse? Só se aplicam quando a cama se mete no meio?
Respeito e coragem são conceitos que se aplicam apenas às pessoas?
(tantas perguntas..)

Maria Helena

shark disse...

O tema propicia mais perguntas do que respostas, Maria Helena, e eu sinceramente não me arvoro capaz de fornecer as últimas. Tenho consciência de que se trata de algo que mexe demasiado connosco para arriscar explicações que, na prática, só a mim se aplicam...

Anônimo disse...

De acordo, Mister Shark.
Parece-me que estamos todos nas mesmas condições: muitas perguntas, poucas respostas.
Como quase todos os assuntos que digam respeito aos sentimentos, este é muito sério, também.
E estas questões são interessantes no debate exactamente porque também nos acrescentam perguntas e, portanto, reflexões e horizontes.

Maria Helena

hellag disse...

um blog interessantíssimo que descobri por acaso! vou voltar, parabéns!

shark disse...

cá estaremos para acolher esse regresso, Hellag.
E obrigado!