Visconde, o homem que cumpre as suas ameaças

Nos primeiros dez segundos só temos olhos para o carro. Um 190 SL, deixaram de se fabricar ainda eu não era nascido, motor de quatro cilindros em linha, duplo carburador Solex, não sei porque está um carro destes num teledisco do Tony Carreira, um Kia Carens ou um Hyundai Santa Fé estariam muito mais em sintonia com a mensagem, isto na minha maneira de ver as coisas e, já se sabe, eu tendo a ver as coisas como elas são.

Entre os dez e os quinze segundos, se houvesse um milagre que substituísse a voz de Tony Carreira pela de Johnny Nash, era capaz de nos apetecer um Nescafé (sim, é uma ideia subliminar de nível quatro, não creio que esteja ao alcance de todos captá-la na sua plenitude...). Nesta parte do vídeo, nota-se que alguém filma a partir do interior do 190 SL. Fosse eu, e não havia nem mais um frame de filme, pegava no carro e era capaz de ir dar uma volta até Colares, ganhávamos todos, eu fico sempre bem dentro de um descapotável e o mundo em geral ficava bem melhor sem um teledisco do Tony Carreira.

Aos vinte e cinco segundos ela chega, acompanhada por duas amigas. Não sei porquê, mas quando vejo mais que duas mulheres juntas, tenho sempre a sensação que estão a caminho da retrete (estava há que tempos para arranjar um bom enquadramento para escrever "retrete").

Parem a imagem no segundo vinte e oito, é o preciso momento em que ela estabelece contacto visual com o homem que a deve ter tramado (é da natureza dos homens tramarem as mulheres, elas estão ali sossegadinhas da vida, a bordar em ponto de Arraiolos, vem o mauzão do homem e desgraça-lhes a vida toda). Reparem no olhar gelado dela, reparem na expressão da amiga, que pressente que é capaz de haver ali confusão, as amigas servem para isso mesmo, para estar ao lado, para sofrer por osmose. Principalmente, reparem no peito dela, a querer libertar-se do espartilho do Wonderbra, a querer soltar-se daquele decote vertiginoso. O tipo está de botões de punho, se quiserem estou capaz de vos explicar o poder que está nuns botões de punho, aqueles não serão botões de punho Montblanc, mas não podemos perder de vista que o tipo, tendo um ar de quem sabe escolher um vinho razoável, no fundo, no fundo, foi apanhado num concerto do Tony Carreira, está bem que parece mais um concerto do Tony Bennett, eu nem sabia que deixavam o Tony Carreira dar concertos em sítios fora do circuito das feiras e Pavilhão Atlântico.

Ao minuto e sete segundos, as três amigas acabam por arranjar mesa e sentam-se. Aparecem três violinistas por detrás de Tony Carreira. Três amigas, três violinistas. Não sei se me estão a acompanhar, mas isto é capaz de querer dizer alguma coisa.

Ao minuto e vinte e quatro, ela vai num instantinho a casa buscar um foto do tipo, para mostrar às amigas. Percebe-se que ela mora na margem sul, provavelmente em Fernão Ferro. Como ela tem um SL190, vai e vem num ápice, quando chega de novo à companhia das amigas, ainda o Tony está a cantar a mesma música.

Ao minuto e quarenta e sete, ela mostra a foto às amigas e riem-se todas. É um clássico, as amigas servem para acompanhar à retrete e para dar apoio nos momentos maus. Rir da foto do tipo é sempre um apoio. E resulta, o tipo sofre como tudo.

Aos dois minutos e catorze, o tipo repara nela (ou na amiga, nunca se sabe...). Prefere olhar para o Tony Carreira a demorar o olhar nela. Deve ter sido um zanga feia...

Aos dois minutos e dezassete alinhado com uma mudança de rimo da música, aparece a fase das recordações. Ela já não se ri, lembra-se do que o tipo tinha de bom (há mesmo uma fase em que ele a encosta à parede que me faz lembrar a cena do elevador no Nove Semans e Meia). Os "good feelings" começam a ganhar terreno, afinal o tipo tinha as suas coisas boas. Ela não resiste e escreve-lhe um bilhetinho, quase de certeza a convidá-lo para uma louca noite, talvez ela insinue que, bem conversadinho, as amigas estão incluídas na festança. O tipo amarrota o bilhetinho, está farto dela e das cenas dela (provavelmente ela pertence à sub-espécie das "drama queen"). Tony Carreira, esse sentimentalão, em vez de vir convencer o tipo a resolver o assunto a bem, em vez de tentar recnciliar o casal desavindo, continua a cantar como se um drama imenso não lhe estivesse a passar defronte do nariz. Um insensível, é o que é.

A pare final é mais um clássico. Ela queima as fotos dele, mais os bilhetinhos que guardou religiosamente na gaveta da mesa de cabeceira, misturada com a lingerie. Como de costume ("drama queen", não se esqueçam...), ela exagera e acaba por incendiar o SL190. Acho mal. Tony Carreira cala-se, finalmente. Final feliz, portanto.


21 comentários:

calamity jane disse...

1) Há que tempos não ouvia (lia) a palavra 'teledisco'. O meu caro pertence definitivamente a uma espécie em vias de extinção...
2) Apanhei na sua plenitude a ideia subliminar de nível 4 (se bem que, se não me engano, o carro era um vw carocha). Tenho direito a prémio?
3) Há aqui um aspecto que não foi desenvolvido por si: qual é o papel do Tony no meio deste filme? Com certeza que interveio neste processo...
4) As violinistas. Ele haveria tanto a dizer sobre as violinistas. Confesso que esperava também tb aqui maior investimento. Por mim, dou-lhe 13.

Teresa disse...

Visconde, anda a organizar as festas da terra?

(sempre usei o termo "retrete". Sanita é nome de uma amiga da minha mãe.)

Mente Quase Perigosa disse...

Ok... Eu vou fazer um comentário longo e exaustivo.

O carro é lindo.

O fulano não tem 'bom ar' e mesmo com botões de punho da Montblanc nunca chegaria ao 9 semanas e meia.

Ela é uma drama queen exagerada.

O misturar de recordações amorosas com lingerie é um mito freudiano.

Amén para a penúltima/última frase

Mente Quase Perigosa disse...

(Até parecia uma pessoa séria, eu. Agora a sério: que camisolinha cinzenta era aquela que a criatura usava nas recordações? O que era aquilo, senhores...)

Unknown disse...

Visconde, dou-lhe os meus parabéns! Só uma descrição tão, tão (olhe nem tenho palavras) ... me faria ver/ouvir o Tony Carreira do princípio ao fim!...

Eloquente (era esta a palavra que me faltou)

Visconde de Vila do Conde disse...

Calamity, calculo que queira substituir "...dou-lhe 13" por "...ao seu post dou-lhe 13".

(sim, confirmo que os da minha estirpe começam a rarear)

(nunca duvidei d que você, CJ, passaria sem dificuldade de maior o nível quatro. Aliás, creio que até ao nível sete você está lá)

(Qual Tony?)

Visconde de Vila do Conde disse...

Tereza, você surpreender-se-ía com as minhas capacidades organizativas.

Visconde de Vila do Conde disse...

Mente, VOCÊ VIU O TELEDISCO TODO?!!!

(aquilo não é para ver, é só para acreditar na minha descrição)

Visconde de Vila do Conde disse...

Ana T, você enche-me de mimos...

(não estou habituado, noto logo estas coisas)

Mente Quase Perigosa disse...

Visconde, CLARO QUE VI!!!! JÁ OUVIU FALAR NO SÃO TOMÉ???!!!

(E devo acreditar em tudo o que diz/escreve?)

Visconde de Vila do Conde disse...

Mente, a minha recomendação é que acredite em rigorosamente tudo o que escrevo e digo. Sem reticências.

Mente Quase Perigosa disse...

Uiii... Isto recorda-me a cena do paciente inglês em que a Katherine pergunta ao Conde de Almasy se tudo vai correr bem.

Ele responde: Sim... Absolutamente...

Ao que ela revida que no 'sim' ela acreditava. O 'absolutamente' é que veio lançar a dúvida.

E toda a gente sabe como é que a coisa acaba (queimaduras de 154143º grau... Morte... Guerra...)...

Portanto, (eu sei que não sou tão gira como a Kristin Scott Thomas e que o Visconde é muito mais giro que o Ralph Fiennes) se não se importa, eu não vou seguir o 'rigorosamente'...

Visconde de Vila do Conde disse...

A Kristin Scott Thomas não é gira (a boca é grande demais), isto apesar de um papel como enfermeira fazer milagres (diria que, de enfermeira, até a Miss Piggy tem qualquer coisa).

Comparar-me com o Ralph Fiennes tem o mesmo efeito em mim que teria em si eu compará-la com a Odete Santos.

(faz bem...)

Unknown disse...

:o) Mimos nunca são de mais... vá-se habituando...

Teresa disse...

visconde, cá estarei para o avaliar...

Mente Quase Perigosa disse...

(A Kristin Scott Thomas não é a enfermeira. É a amante.)

(O Ralph Fiennes levava-me onde quisesse - desde que não sorrisse que ele a sorrir não tem piadinha nenhuma - portanto esteja caladinho e aceite o elogio graciosamente.)

(Eu sei...)

P.S.: Enfermeiras, Visconde? Hummmm...

Visconde de Vila do Conde disse...

Enfermeiras, Mente. Vidas...

(baralhei o "Paciente Inglês" com o "Enfermeiras Desinibidas III")

Mente Quase Perigosa disse...

Eu poderia sentir-me tentada a fazer ligações e a tirar ilacções entre os seus dois últimos comentários, mas felizmente (para si em geral e para o mundo em particular) tenho um carro para ir buscar à lavagem e não tenho tempo. Vidas...

(Mas é tentador, Sr. Visconde, muito tentador...)

Wolve disse...

mas que raio de ideia fazem as pessoas de Fernão-Ferro? É uma linda zona!

... vive lá a minha mãezinha e tudo...

E não reparou, Exmo. Visconde, que o piano é o detalhe mais ridiculo de todos, pois a marca, que figura aos 45 segundos, está listada assim no fundinho mais cavernoso e humido das hierarquias de pianos...

gostaria de comentar mais a obra de arte musical, mas os meus ouvidos não aguentaram, peço que me perdoem.

Wolve disse...

PS - so mesmo porque a memoria já não é o que era... Se fosse um Spitfire também não calhava nada mal: o que faltava em classe (comparado com o SL), sobrava em charme e caracter.

Visconde de Vila do Conde disse...

Wolve, entendo o seu problema logístico no que concerne à problemática da crítica musical. Está perdoado, naturalmente...