A tragédia deu-lhes nomes e a Dalilah, mãe de Rayan e mulher de Mohamed nunca foi só mais um número nas estatísticas das mortes da Gripe A.
Os vinte anos que Dalilah tinha não foram capazes de vencer a infecção mas se o dia 29 de Junho foi o dia da morte dela foi também o dia em que nasceu Rayan, o bebé saudável que ela carregava há apenas 28 semanas.
Não é fácil imaginar como Mohamed conseguiu gerir tantas emoções a dispararem em sentido contrário mas Rayan estava cá, era o filho dele, e ia crescendo na unidade de Neonatologia do Hospital Gregorio Marañon em Madrid.
Até ontem.
Ontem, uma enfermeira que fazia o seu primeiro dia de serviço naquela unidade, cometeu um erro terrível ao baralhar-se com as sondas e alimentou o Rayan não pelo tubinho que lhe ia do nariz até ao estômago mas por via intravenosa. O Rayan, que já tinha vencido o vírus estranho, não conseguiu sobreviver a este ataque directo ao seu coração minúsculo e morreu.
Sim, eu sei que nada nesta história é bonito. Tudo está longe, muito longe, de uma história feliz, daquelas que gostamos de ouvir contar e nos deixam com um sorriso encantado. A tragédia, o horror, a sorte injusta revolta-nos e precisamos de culpados que nos sirvam de bombo para a dor. Aqui, servida de bandeja, sem dúvidas nem inquéritos, tinhamos a enfermeira posta a jeito de ser imolada pela família com quem a morte brincou.
Jaime é tio de Mohamed e foi ele a voz dos outros que choravam. E ontem, quando a revolta nos fervilharia a todos no sangue, Jaime disse para quem o quis ouvir o que eu não sei se conseguiria ter dito:
"Queremos saber o que fizeram, a rapariga só trabalhava ali há um dia e não é responsável. Os responsáveis são os doutores que mandavam e não ela", disse o tio de Mohamed.
"Pobrezinha. Imagino como não estará”, acrescentou. “Queremos que saiba que para nós ela não teve a culpa”.
E agora, depois de tanta tristeza, estas palavras maravilham-me.
Porque há pessoas, como o Mohamed e o Jaime, que me fazem continuar a acreditar que ainda há gente boa por aí. É que quantos de nós, naquelas circunstâncias, teríamos uma palavra de conforto para a mão que virou o berço?
Quando a dor nos bate à porta disparamos em todas as direcções e até ao Deus que não conhecemos e nunca vimos é pedido que preste contas. E se nós que ouvimos contar podemos até perder um momento a pensar no drama que aquela enfermeira estará a viver, quem está no centro do furacão tem de ter uma enorme bondade e ser completamente desprovido do egoísmo que nos é próprio para no meio da sua dor estender a mão e consolar quem, apesar de tudo, directamente a provocou.
Podem até tentar convencer-me que há aqui, nestas palavras, um lobo com pele de cordeiro que eu só consigo ver uma compaixão pelo próximo como eu nunca conseguirei ter.
E, isso sim, é bonito. Muito bonito.
4 comentários:
Hoje deve ser dia do post sério e bonito e ninguém me avisou.
Digo já que eu não era capaz desta grandeza.
reparem nos nomes...com um toque muçulmano...também há "gente boa" em todas as religiões,...
Tereza, eu acho bonito, sim. E acho que a enfermeira tem que chegue para ela, destruir uma carreira é obra (a notícia não diz se era o primeiro dia de trabalho ou se era o primeiro dia de trabalho naquele serviço). Mas também sou pela responsabilização e, neste caso, não foi o porteiro que fez o erro, não foi o motorista de administração que estava ali para dar uma ajuda e que se enganou. Foi uma enfermeira que cometeu um erro que, a acreditar nos dados da notícia, me parece um erro grosseiro. E, neste contexto, não percebo a reacção dos familiares (repare, eles não são magnânimos ao ponto de dizer "foi uma fatalidade, ninguém faz uma coisa destas por querer, estamos tristes mas a vida é mesmo assim, o mal está feito, resignamo-nos").
e o incrivel é que acho que nem se trata de "gente boa" mas apenas de de "gente com um elevado discernimento e sentido de justiça" porque efectivamente o que ele diz é verdade. a criança era de alto risco, não se entrega 1 alto risco a alguém que acabou de chegar.
e já agora deixa-me reforçar a chamada de atenção que o comentador aí de cima faz: pois é, as pessoas não são boas ou más pelo simples facto de serem muçulmanas, europeias ou asiaticas ou pelo simples facto de serem cristãos, islâmicos, ou ortodoxos, ou ainda por serem brancos, pretos ou às pintinhas.
já que o comentário vai longo, mais longo menos longo já tanto faz e até compensa a minha ausência, portanto só mais uma coisinha. eu sei que é trágico, acho que os meus neurónios esturricavam de vez quer estivesse no lugar da enfermeira quer do pai do bebe mas... erro... erro médico... sorte a daqueles que só trabalham com papel e podem usar corrector...
(estão todos bem por aqui, não estão?! a tua perna já está boa Tereza?)
Postar um comentário