O outro lado deles.

Nunca fiz esta análise em voz alta, muito menos por escrito, mas talvez seja a hora de a fazer e este parece-me um sítio tão bom como outro qualquer.
Ali em baixo, na caixa de comentários do outro post, fala-se em diferenças, mentalidades, mundo, mas eu, aqui, vou falar do tal outro lado. Vou falar de mim, só de mim, porque eu, afinal, também sou diferente e acredito que é por aí, por aceitarmos a nossa própria diferença, que tudo começa.
Não vale a pena, logo agora que me apetece chamar os bois pelos nomes, pintar o que seja com cores que não tem. Quem teve um filho deficiente, sim, é isso, deficiente, percebe o que vou dizer. Se for mãe percebe ainda melhor.

Culpa. A primeira coisa que sentimos é culpa, vergonha, falhanço. Nós não fomos capazes. Nós, mães, podemos estar conscientes de tudo, dos acasos, da ciência que não explica, da sorte e do azar, de não termos feito aquele filho sozinhas mas ali, no momento da verdade, depois de o termos carregado aqueles meses todos, nós, só nós, nos damos imediatamente por culpadas e perguntamos qual foi o nosso erro. Olhamos para o nosso filho e pensamos que a primeira coisa que nos foi pedida que fizessemos por ele fizemos mal, porque nós não fomos capazes de fazer um filho, o nosso nasceu com defeito. E começamos, logo ali, a pedir-lhe desculpa. E tentamos, logo ali, que a prova viva da nossa incapacidade não tenha de pagar ainda mais pela nossa imperfeição. E começamos a protegê-lo, e começamos a proteger-nos.
Não é fácil carregar essa culpa e menos fácil ainda é libertarmo-nos dela. Nada ajuda, nem mesmo quem quer ajudar. São poucos, muito poucos, os que conseguem dizer-nos qualquer coisa que não aumente ainda mais a nossa miséria. Por essa altura chegam as palavras de conforto, mas será que queremos ser confortadas?, o conforto implica a existência de um desconforto, culpa portanto, chegam as perguntas inocentes "fizeste amniocentese?" que nos apontam dedos sem querer, o cruel "a menina já não era assim tão nova devia ter tido cuidado", o coitada dito entre o mar de lágrimas de um amigo qualquer - não, nós não queremos ser coitadas, nós queremos ser espancadas porque somos culpadas. Todos os que nos rodeiam passam para um lado que já não é o nosso e tratam-nos como se nós, de repente, nos tivessemos tornado cicerones de um mundo que não conhecem. Sai-lhes tudo boca fora, porque estão, eles, a viver uma experiência diferente, mas nós, as mães, as responsáveis por toda aquela confusão, temos de ter respostas para dar. "Coitado do pai, tens de perceber que está transtornado", "na nossa família é a primeira vez que acontece". "não vamos dizer já, temos de dar tempo às pessoas", "foi Deus que assim quis (o tu pecadora tiveste o que merecias fica escondido com o rabo de fora..)".
É naquela altura, debaixo de fogo cerrado, a espetarmos facas em nós mesmas e a querer perceber criticas veladas em tudo o que nos dizem, que temos de tomar a grande decisão da nossa vida - vamos carregar a nossa culpa e esconder as provas ou vamos tentar virar o jogo e fazer da nossa derrota uma enorme vitória?

Acham que estou a exagerar? Acham que não é assim? Acham que as mentalidades, e o direito à diferença, e o somos todos filhos de deus nos servem para alguma coisa quando estamos lá, sozinhas, frente a frente com o fruto do nosso ventre que nos esfrega na cara o nosso enorme falhanço, que nos faz sentir que somos menos mulheres e piores mães?

Não sei, já não me recordo, como se dá o salto para este lado onde agora estou mas sei que a descida aos infernos é violenta e sei que a subida é difícil e se faz sozinha. A tentação de passarmos o resto das nossas vidas, e da deles, a pedir desculpa, a pedir-lhes desculpa, é muito grande e percebo que a tentação de vivermos essa culpa escondidas do mundo, nós e eles, é ainda maior. Os outros talvez possam ajudar, os outros talvez possam facilitar, as mentalidades diferentes talvez tornem menos íngreme a subida, mas nada, nunca, vai impedir que a primeira batalha seja travada sem outras armas que não as nossas e seja uma batalha solitária. E quer se queira quer não, quer o digamos em voz alta ou o tentemos esconder no nosso fundo mais fundinho, vai deixar sempre cicatrizes. Se as mostramos ou as escondemos é o que faz a diferença na nossa vida e nas vidas deles.

(eu gostava de ser uma pessoa perfeita e de não ter sentido nada disto, mas não sou. acredito que pode haver quem seja mas também acredito que nunca é muito diferente)

22 comentários:

Rachel disse...

Mesmo que não seja uma posta de opinião, concordo na mesma, again...

:-))

Fusão do Atomo disse...

Sinto-me esmagado ao ler este manifesto de coragem, sobra-me em pensamentos o que me falta em palavras.

Tereza, és enorme.

Sérgio disse...

Se dúvidas houvessem ficaram completamente esclarecidas com este texto. Não és perfeita, mas estás no caminho certo. A coragem que demonstras é a coragem que muitas vezes me falta. Obrigado pela oportunidade de te "conhecer" vou tentar aprender contigo.

Anônimo disse...

dás-me o nº do teu psiquiatra? o gajo é brilhante...

CybeRider disse...

Fácil é o alívio cobarde que se sente quando vemos que o que criámos se pode mimetizar nesta sociedade podre governada por preconceitos e deuses feitos por nós à nossa imagem e semelhança. Quantos estarão preparados para um imprevisto superveniente? Poucos, garanto-te! A deficiência, que é uma potencial constante, é encarada levianamente como uma eventualidade remota até um dia fatídico...

Diferentes somos todos, alguns conseguem apenas disfarçar melhor que outros as suas profundas fraquezas e inaptidões, normalmente bem piores que as visíveis. A culpa da diferenciação não é de quem cuida, mas de quem rejeita, e quem rejeita não deveria esperar para si mais do que a rejeição; e no entanto espera, porque tem a ilusão de poder iludir.

Até quando?... Faltarão talvez muitos pensamentos como o que aqui deixas em alerta às deficiências de muitos que se julgam sãos e escorreitos, talvez não os mereçam. Bem hajas pela nobre tentativa!

Anônimo disse...

Hum... Aqui há gato...

Wanónimo

Teresa disse...

Acho que vou ter de escrever tudo outra vez, mas de outra maneira. Coragem, a mim, é o que mais me falta. Normalmente escolho o caminho mais fácil e o caminho mais fácil foi este, sem dúvida.

Teresa disse...

Anónimo, o meu psiquiatra não tem telefone, tenho pena.

Teresa disse...

wanónimo, aqui não há gato só há dois cães e um deles, se o quiseres, o prazer é meu.

Anônimo disse...

Há gato há, mas comenta disfarçado...

Wanónimo

Teresa disse...

e deves pensar que não te topei à légua...

Olinda disse...

oh.:-( é só o d que está a mais

(pensa e sente assim, vá). :-)

Mente Quase Perigosa disse...

Qual d, Sinhã?

Olinda disse...

tira o d a deficiente e vês

(dá para os pais e para os filhos. sem culpa).:-)

Mente Quase Perigosa disse...

Ora agora disseste uma coisinha muito acertada. E se são as duas bem eficientes!

Olinda disse...

mesmo torcidinhas eu acerto sempre (pelo menos sempre à medida do meu cesto).:-)

Teresa disse...

Sinhã, não é preciso mudar nada, está tudo bem assim.

Olinda disse...

boa. :-)

Violeta Extravagante disse...

Vamos lá ver se é desta. É a 3ª vez q vou comentar, mas por motivos técnicos esta treta ou bloqueia ou dá erro.

Não és uma pessoa perfeita e ainda bem, os perfeitos sabem tudo, os perfeitos são donos da verdade, os perfeitos não querem ser mais e melhor pq pensam q já o são.

Qdo tinha entrei para a escola, tive uma colega vizinha que tinha um irmão com o mesmo sindrome.
Perguntei à minha mãe pq é q ele andava numa escola especial, resposta pronta: pq os meninos especiais andam em escolas especiais.
Qdo ia a casa da minha colega, sentia um misto de ternura e admiração pelo irmão mais velho da minha vizinha. Ele sabia de cor os nomes de todos os jogadores do Benfica. Os anos foram passando e sempre me habituei a ver o irmão da minha colega, fosse nas festas anos deles ou na minha. Lá estava ele sempre feliz porque vivia numa familia que o fazia sentir feliz que não o fechava em casa.
Isto há mais de 35 anos...
Nem imagino o que sentes, pq nunca o senti na pele. Mas acredita que como mãe o compreendo.

Beijinho

Carla disse...

Boa noite, tenho seguido o teu blog pk achei piada ao nome e li alguns posts com os quais me identifiquei.
Hoje, ao ver este teu post vejo como és uma GAJA com G gigante. O direito à diferença e a ser diferente é algo que poucas pessoas compreendem... o ser mãe é outra coisa que muito poucas pessoas são capazes de fazer em consciencia,normalmente tentam projectar nos filhos/as aquilo que queriam ser e por este ou aquele motivo não foram... ninguém nos ensina a ser mãe, muito menos alguém nos ensina a enfrentar a deficiencia de um filho. Normalmente diz-se às pessoas que que tudo vai correr bem... infelizmente não é assim, as coisas não correm bem... pk ter de enfrentar todos os dias um mundo que mal está preparado para receber crianças "normais" tentando dar o melhor de nós e não conseguir causa uma grande frustração... só não concordo contigo quando dizes que tiveste culpa!!! Obvio que não consegues deixar de a sentir, mas sabes perfeitamente que muitos são os factores que levam à deficiencia de um qq ser, normalmente factores que nos são externos ou que são biológicos mas que não temos a capacidade de controlar.
Desejo para ti e para a tua Filha a maior felicidade do mundo e também toda a coragem para os dias dificeis e alegria para os momentos menos fáceis... para os momentos bons, que de certeza também existem e são muito gratificantes, desejo que se repitam intensamente e que tornem este teu mundo um pouco menos amargo.
Carla

Anônimo disse...

Abraço Tereza...
ontem escrevi aqui um texto que
parece se perdeu no momento "x" do seu envio...
mas n quero deixar de deixar o "abraço"
q era o + substancial dele, texto
luta continua!!

alicealfazema disse...

Não existem pessoas perfeitas...existem apenas aquelas que se aceitam e as que não se aceitam.