Chegaram um dia de manhãzinha e num instante já só se via fumo. Parecia milagre.
A Serra do Caldeirão estava há dias a arder e não havia maneira de darem conta daquilo. O fogo vinha de Almodôvar e já chegava a Tavira e aqui, a quase setenta quilómetros de distância, as chamas viam-se tão perto que despachei as miúdas para casa da avó. Por esses dias viviamos colados às notícias mas os aviões não havia maneira de chegarem. Por cá estavam todos ocupados e lá de fora só vinham negas.
Naquela manhã vieram dois, apagaram o fogo e foram-se embora como chegaram. Sem dar grandes satisfações a ninguém.
A história destes aviões soube-a mais tarde, meses mais tarde. Quem me a contou foi um dos intervenientes nela, mas aqui, nesta praça pública, olvidam-se-me convenientemente os nomes das personagens principais. O resto conta-se depressa.
Vivia-se um Verão complicado em França e o Presidente da República mandou que todo o seu governo cancelasse as férias. Viagens só em trabalho.
E foi em trabalho que o première deles teve que vir a Lisboa. Numa sexta feira. Despachado o serviço montou no avião oficial e à sucapa, muito à sucapa, veio até ao Sul que aqui é que se está bem e tinha cá muitos amigos.
Quando entrou na Club House não levava calças curtas mas o boné estava enterrado na cabeça. Tão enterrado que só o reconheceram pelo calão habitual. Cumprimentos, abraços, e a seguir a conversa vai directa para o Inferno que lá dos céus viu nas serras.
Aviões. Só mesmo aviões iam conseguir apagar aquilo. Porque raio o nosso governo não mandava os aviões?
Não havia aviões. Nós não tinhamos e os russos e os franceses estavam a pedir um preço que não podiamos pagar. Aquilo ia arder tudo.
Ia? Não, não ia, que amigos são assim, sempre prontos a ajudar.
Foi logo ali, naquele fim de tarde de uma sexta feira, que foi feito o telefonema que apagou o fogo. Simples. Muito simples. Um telemóvel, uma ordem que nem precisou de ser explicada e ao outro dia, pela manhãzinha, os dois aviões franceses, aparecidos não se sabe como, apagaram o fogo da serra algarvia.
Quantas etiquetas podemos pôr aqui? Algumas, sem dúvida.
Tráfico de influências. Corrupção (agradar a um amigo é uma vantagem, mesmo que não seja paga com os tremoços do costume). Abuso de poder. Tudo e mais alguma coisa.
Mas as perguntas, as únicas perguntas para as quais não tenho resposta, são quantos de nós, naquela mesa e naquele dia, tinhamos resistido sem meter a cunha? E quantos de nós, no lugar do outro, tinhamos deixado de fazer o tal telefonema?
Há 2 anos
8 comentários:
Eu metia a cunha. E seguramente faria o tal telefonema.
Depois chamassem-me filho do tio se quisessem...
Primo!!... vem a meus braços...
(Minha rica Chefa. Qualquer pretexto lhe serve para se abraçar ao tubarão...)
E eu preciso de pretextos para isso?? Se bem me lembro foi mesmo a primeira coisinha que te dei. Sem pretextos.
Bem, ele também lá estava. O incêndio até podia espalhar-se. Mas sim, foi muito simpático.
Gabs, no incêndio nunca ele chamuscaria o rabo. Para o apagar correu esse risco.
Bela história. Para mim vejo-a como a prova de que a pessoa humana ainda é muito importante, o indivíduo. Não tem nada a ver mas tem graça: uma vez na SPA eu estava a tratar de uma assunto meu e ouvi a centímetros da minha orelha o problema de alguém que queria registar uma canção maa não sabia onde estava a autora do poema. Eu tinha recebido uma carta dessa autora que estava algures no Brasil e resolvi o problema à autora da música. A moça nem queroa acreditar... a)JCFrancisco
afinal o Milk não foi o único a ser assassinado. Naquele dia e pela mesma pessoa. Continuas a achar que foi homofobia ou, como eu defendo, a homossexualidade dele foi o menos importante? O tipo era boa pessoa e pagou por isso. Mais nada.
O movimento GLBT, quando se vitimiza e ergue altares a mártires, lembra-me os Cristãos das catacumbas. Resulta, mas Cristo era mais bonito.
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