Mostrando postagens com marcador Amanhã é 1º de maio e só espero que o anónimo defensor da classe operária venha cá chamar-me reaccionária que à falta de sol estou a precisar de dar umas gargalhadas valentes. Mostrar todas as postagens
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A chefa mandou e eu sou muito bem mandada

Retrato-robô das sopeiras de antanho

(aka a minha posta das irenes)

Capítulo 2* – As empregadas das nossas mães

Chamavam-se Isabel ou Maria do Céu e tinham 15 anos quando vinham da terra pela mão da velha tia. Chamavam os nossos pais “Senhor Doutor” e com alguma rapidez ganhavam confiança connosco para nos tratar por tu e interpelar-nos pelo nome. Antes de ficarem com o exclusivo do quartinho ao lado da cozinha, partilhavam-no, e à cama de corpo e meio, durante um ou dois meses, com a tia que as tinha trazido. Esta última só partia quando tivesse a certeza de que dominavam por completo o serviço da casa, transmitido com rigor, ao longo desse período “de estágio”. Já vinham da terra, claro, a saber lavar, limpar, passar, passajar, cozinhar. Mas chegando à cidade grande, havia que aprender os cantos à casa, os hábitos dos patrões, os nomes e as moradas dos comerciantes do bairro. Vinham com o coração expectante e a cabeça cheia de sonhos. Aspiravam a tornar-se cabeleireiras ou educadoras de infância. Experimentavam os penteados das actrizes da telenovela (o Astro, Casarão, Dancin’ Days) e rapavam os pêlos das pernas e dos sovacos com gilette. Começavam a trabalhar às 9h00. Saíam às seis da tarde para o liceu onde completavam o ciclo preparatório ou o antigo 5º ano. O namorado andava na tropa e ia buscá-las ao sábado à noite para irem ao cinema e ao domingo para as matinées dançantes. Nos tempos livres liam fotonovelas e romances de cordel da Corín Tellado (a propósito, sabiam que a senhora se finou há poucos dias?) ou faziam intermináveis toalhas e colchas de croché para o seu próprio enxoval. Depois do almoço, passavam a roupa a ferro enquanto viam na televisão as repetições das novelas que não podiam ver à noite por estarem a estudar. Eram pouco mais velhas do que nós e por isso confidenciavam-nos as suas coisas e podíamos contar com a sua cumplicidade para os nossos pequenos deslizes. Quando os nossos pais saíam à noite, deixavam-nos ficar acordadas até mais tarde e ficavam connosco a ver os filmes proibidos na televisão. Não tinham ordem para nos puxar as orelhas mas estavam instruídas para prestar aos nossos pais relatórios diários sobre o nosso comportamento, relatórios esses que eram mais ou menos negociáveis. A autoridade que tinham sobre nós era, claro, obtida à custa de uma certa dose de chantagem algo semelhante à que os irmãos mais velhos fazem sobre os benjamins (se fazes/não fazes ou contas isto/aquilo vou dizer ao teu pai que… - processo esse que podia ser biunívoco conforme o grau de ‘rabo preso’ que tivessem). Zangavam-se connosco quando pisávamos o chão acabado de lavar ou se desarrumássemos a cozinha que tinham arrumado pouco antes, mas logo a seguir iam lá e limpavam/arrumavam tudo outra vez, numa operação que pelos motivos acima referidos podia contar com mais ou menos participação nossa. Faziam o que lhes era pedido e tinham um certo nível de autonomia mas não decidiam as refeições nem escolhiam os dias das grandes limpezas. Andavam connosco para todo o lado e pediam-nos ajuda para pequenos recados. Quando faltava a água – o que acontecia várias vezes por ano - , pegavam em nós, nas bilhas e nos garrafões e lá íamos, juntamente com as empregadas das vizinhas, de quem eram amigas, às bicas da cidade. No regresso, transportavam as bilhas cheias no topo da cabeça, o que causava em nós uma admiração por elas sem precedentes.

Em Julho aturavam-nos os dias inteiros enquantos os nossos pais ainda estavam a trabalhar e não era tarefa fácil para elas controlar-nos quando as nossas hormonas começavam aos saltos e as delas já iam um pouco mais adiantadas. Mas como eram intrinsecamente bem-formadas e responsáveis, conseguiam gerir a coisa com algum savoir faire. Iniciavam-nos nalguns segredos do mundo dos adultos que elas próprias bebiam da Maria e da saudosa Crónica Feminina. Um belo dia, lá nos levavam com elas na sua folga e descobríamos então todo um admirável mundo novo de cuja existência nunca antes suspeitáramos como, por exemplo, um bailarico almodovariano numa sociedade recreativa da Rua dos Fanqueiros. Em Agosto iam connosco de férias para o Algarve mas em Setembro partiam para a terra durante um mês seguido e era o cabo dos trabalhos para a família inteira passar sem elas.

E um belo ano, quando voltavam, vinham transformadas. Começavam a ter de se ausentar mais vezes porque tinham de tratar da sua vida. Além dos exames e dos cursos por correspondência, iniciavam - por vezes às escondidas - os preparativos para se casarem. E avisavam os Senhores Doutores que se iam embora, e convidavam-nos para padrinhos, mas já não asseguravam a sua substituta. Até porque tinham um novo emprego à espera, ou então, o futuro marido não queria que elas continuassem a trabalhar. Prometiam continuar a aparecer, o que faziam durante o primeiro ano, ou dois, ou dez, mas o inexorável caudal dos dias encarregava-se de, inevitavelmente, as dissipar no nevoeiro do esquecimento.

Começava então o infindável périplo das nossas mães, forçadas a entrevistar dezenas de candidatas (cujas pintas fazíamos questão de ir controlar pela fresta da porta entreaberta da cozinha) chegadas por via de um anúncio colocado no Diário de Notícias. Era então que a família era obrigada a mudar os seus velhos hábitos, pois chegados a esse ponto da história, apercebíamo-nos que já ninguém queria ficar como interna. Nada voltaria a ser como antes. Mas isso ficará para o próximo capítulo.


* O primeiro capítulo (aka a minha posta das adelaides) pode ser lido no tasco da Calamitosa, mais precisamente aqui