Chama-se " Grande Livro da Casa do Algarve" e fica guardado no móvel preto da sala. Entradas curtas, escritas à mão num festival de caligrafias que nos últimos 35 anos foram registando as férias de quem por aqui passou. Ou o que se podia, e queria, registar das férias de quem por aqui passou, que eu já estive quase quase para telefonar à Ana C para lhe pedir que me avivasse a memória porque não me lembrava, não tinha ideia alguma, que ela tivesse estado cá comigo mas lá está, no Grande Livro, na página 36 - "17 a 21 de Junho de 1992 – Teresa e Ana C. Tempo óptimo apesar das previsões meteorológicas. O único senão foi (e continua a ser) o enorme abcesso que me transformou a cara numa massa disforme. Que férias!..." e a letra é a minha e Teresa sou eu mas a Ana C, raio de memória que me falha nos pormenores e me limpa a perspectiva histórica, percebo agora, não era a Ana C, que essa nunca cá esteve, porque quem cá esteve comigo, quando se faz luz nas nossas cabecinhas o mundo fica logo diferente, dava por outro nome e era bem mais encorpado que a Ana C.
E o Grande Livro é todo assim, cheiinho de vidas, de gentes, de pequenos apartes que fazem a história de uma família grande, a minha, que dividia irmamente uma casa de férias. E é por ele que agora sei que no dia 7/7/77 chegou a chuviscar, que eu os meus pais e os meus irmãos fomos ao Cabo de São Vicente e que apesar do dia estar pouco agradável as lulas estavam boas, ou que os únicos telefones públicos por aqui eram no quiosque da praça de Albufeira ou na cabine em frente ao Banco Pinto & Sotto Mayor, que a bomba de gasolina mais próxima era na estrada da Balaia, que a pesca ao currico se faz com amostra metálica, de manhã e à tarde, e que às restantes horas cu-rico só na Praia da Falésia, que o grelhador foi comprado em 1978 e custou 450 mil reis, que a família Chiodo visitou-nos em 79 e prometeu voltar, que o Pedro F. passou por cá em 1980, que em 1991, e graças à colecção de panos de cozinha da tia N., voltámos a ganhar o popular prémio "a varanda mais folclórica", que o Conan, que na altura tinha nome próprio e apelido e era namorado da minha prima, assinou o Livro em Agosto de 83, que os empregados de um tal Restaurante Venezia eram giros e que o bar da Quinta do Lago (haveria só um?!) tinha bons cocktails e era "favorável ao engate".
E há histórias de tarântulas gigantescas, de gatos pequenos, de angústias, de casamentos, funerais e aniversários, de amigos que já morreram e amigos que nunca mais vimos, de puxadores de portas que se partiram e torradeiras que se compraram, do vento que derrubou árvores, do coração que derrubou o meu pai, dos centímetros todos que a Clara, com 4 meses, aqui cresceu, de maridos, mulheres e namorados oficiais, que tinham autorização para sair da clandestinidade e deixarem o nome no Livro mas que não deixaram mais nada, e que desapareceram das vidas de quem por cá esteve com eles.
O "Grande Livro da Casa do Algarve" poderia um blog se não tivesse o dia 3 de Outubro de 1975 a datar o primeiro post e hoje eu, tal como a Peixa há uns dias, andaria mergulhada em arquivos na vez de desfolhar páginas e seguiria links na vez de ir atrás de setas desenhadas a esferográfica azul e sairia do blog tal como saí do livro, coberta de pó, nostálgica, saudosa e feliz.
Um blog é só um blog e um livro, mesmo que seja O Grande Livro, é só um livro. O que encontramos lá dentro, o que encontramos aqui dentro, as histórias que lembramos, as pessoas que por cá ou por lá passaram, os afectos que ficaram ou se foram, são, também, a nossa vida e este blog, este Cabra de Serviço, pode não ter 35 anos da minha história mas faz, definitivamente, parte dela. Com letras desenhadas ou em caracteres de computador a diferença é nenhuma porque o que está, e o que fica, guardado no blogger ou no armário da sala, são vidas de gente que se cruzam e descruzam e se nesta casa de férias passaram muitos que não vão poder voltar nunca há outros que continuam a aparecer e outros ainda que até podiam ser o namorado da prima com nome e apelido e entrarem pela porta 1, ou 2, e voltam a aparecer com nome de super herói, mais de vinte anos depois e por um caminho diferente porque a porta, ou as portas, para a nossa gente, a que foi, a que é e a que virá a ser, continuam abertas e casas de férias, mesmo que se durma no chão, têm sempre espaço para mais alguém.