"O destino é, quase sempre, bastante generoso"...

...escrevia ontem a gaija do norte numa caixa de comentários. Pode ser que tenha razão, mas nem por isso deixou de escrever aquele quase sempre precavido. Neste quase sempre que muda o sinal à tal generosidade que se espera, cabe quase tudo. Cabem dias, cabem anos, podem caber vidas inteiras.
E o destino tornou a valer-se deste quase que nos troca as voltas e brincou com quem não deve. Ou não devia. Ou não podia.
Tudo se foi desenrolando como se nada de importante fosse acontecer. Uma coisa aqui, outra ali, e o tal de destino a olhar para a arena, atrás das tábuas do quase, à espera da colhida fatal que ele já desenhou muito antes da faena começar.
Neste momento tenho duas crianças a chorar. A uma escorrem as lágrimas pela cara à outra escorrem as lágrimas por dentro, que só daqui a muitos dias vai conseguir que lhe rebentem nos olhos. Estão na escola, para onde quiseram ir, mas não estão lá. Estão as duas naquela curva do caminho onde acabaram de ver, mesmo na frente delas, o cachorro preferido a ser levantado pelos ares por um carro com pressa de chegar a um destino com um quase qualquer. Nos ouvidos delas não deve estar a algazarra habitual, mas aquele barulho surdo que ainda está nos meus também. O barulho que faz uma vida a acabar num pára-choques que não cumpre o prometido, num pára choques que não pára choque nenhum, mas o começa. E a seguir ao barulho, em cima dele, estão os gritos delas, e a imagem da Buderball estendida, morta, no meio da estrada, e a Francisca com uma guitarra às costas a correr desvairada pelos campos, e a Clara sem se conseguir mexer, sem falar, com as tais lágrimas que ainda não estão cá fora, nem vão estar tão depressa, a queimá-la por dentro.
O destino é generoso? Quase sempre... E escudado no quase que corta o sempre dá a duas miúdas que já tiveram quases demais na vida delas o presente que não fazia parte de lista nenhuma. Dá-lhes uma memória que certamente as irá acompanhar para o resto da vida, como se fosse preciso começar já a enchê-las de tristezas e amarguras. Dá-lhes, servida de bandeja, numa manhã fria de vésperas de Natal, a imagem horrível do cachorro com que acabaram de brincar a ser atropelado na estrada que todos os dias as leva para a escola.

Devia haver uma regra qualquer, escrita num sítio qualquer, inderrogável e sem excepções, que proibisse qualquer destino de pregar a duas crianças uma partida tão violenta como a que acabou de pregar.
Há coisas mais graves? Certamente que sim, mas estas são as minhas crianças, esta é a dor delas e pequena ou grande que seja está a fazê-las chorar. E isso é o suficiente para eu estar furiosa com um destino rancoroso que magoa meninas que brincam com cachorros numa manhã de Sol. Que magoa as minhas meninas.

Adenda: As minhas meninas. Chico Buarque. Álbum Francisco.
Porque sim. Porque (ainda) me apetece chorar.

As Minhas Meninas - Chico Buarque

9 comentários:

Anônimo disse...

deixa estar, parece que para dar valor ao tal paraíso temos que passar pelo outro lado, vai que não vai, não sei bem porquê, no entanto na minha vida, mesmo de ressaca, tenho frequentemente a sensação de que está tudo certo

olha uma divertida que me bateu directo, paropriada para o cabra :)

http://aeiou.expresso.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/472037

Teresa disse...

z, essa é a teoria do dono do jardim... temos de atravessar este vale de lágrimas carregando o sacrifício e fugindo das doces tentações do pecado, para finalmente descobrirmos a paz e a felicidade. Muito francamente, estou farta de ver promessas adiadas.

Anônimo disse...

ah, mas eu também fazia um feitiço e estávamos já, cá, no Paraíso e pronto.

fica-se tolo

shark disse...

Promessas adiadas?
O destino colocou no teu caminho o tubarão, precisamente para te compensar estas partidas que te prega!
Olha, estou muito flixado com esta tua história.
Não gostava de ver a minha menina passar por esse filme...

Anônimo disse...

há uma maneira de ver o jardim assim, Teresa, mas na floresta o jardim está lá, só que não somos os donos, é isso que liberta

estamos ali apenas, somos parte daquilo

Ângela disse...

Vai ser complicado.
É sempre... Mais ainda quando a perda decorre da burrice humana e não do decurso normal da vida.
Bjs

Teresa disse...

Nem eu, Tubarão, nem eu. Mas nestas alturas fica-se a pensar que nos é impossível parar o projector e elas vão ver muitos filmes maus e nós vamos estar ali a sentirmo-nos inúteis.

Ângela, pois... E queres saber que o carro nem parou?
Para além de um cachorro morto deixou matade do para-choques no meio da estrada, tal a velocidade com que ia, e nem abrandou. E estamos a falar de uma estrada de campo onde além de cachorros há crianças pelas bermas à espera da carrinha da escola.

Z, a floresta não nos deixa ver o jardim?

gaija do norte disse...

podia ter dito, "o destino é, por vezes, lixado" que não mentia. apesar de tudo, tudo mesmo, prefiro não o esperar nem entender assim. a minha forma de o encarar permite-me não azedar de vez...

contei ao Luís. ficou triste e mandou beijinhos às manas.

Marias disse...

Que pena, um cão pequenito... Gosto...
Ah, sabes o que aconteceu aos irmãos aqui do meu rato? Foram vendidos a um gajo que tem cobras.
É o destino.