A mãe. A minha mãe.

Há 43 anos, no dia 3 de Maio de 1966, a minha mãe foi mãe pela terceira e última vez. Eu tinha três anos e pouco, a minha irmã um ano e meio e nasceu o meu irmão.

Não me lembro da minha mãe nessa altura. Não me lembro da minha mãe durante grande parte da minha infância. Lembro-me do meu pai a contar-nos histórias à noite na cama, do meu pai na pista do campo de aviação com o carro cheio de miúdos a fingir que íamos levantar voo, lembro-me do meu pai a levar-me ao jardim escola, ao colégio, escondido no fundo da sala durante o meu exame oral na quarta classe, mas não me lembro da minha mãe.

Lembro-me sim, muito bem, da senhora muito bonita que saía com o meu pai. Lembro-me dela com o vestido branco. O vestido branco de que eu sempre gostei e que nunca esqueci. O vestido que achei que um dia ia vestir mas que as traças cortaram porque aquele vestido era dela, só dela e elas sabiam disso. Comprido, até aos pés, com dezenas de pequenos botões à frente e um fabuloso bordado em linha de seda, feito à mão, que começava no lado esquerdo do vestido e acabava quase cá em cima, no lado direito. Olhos do azul dos fios das flores de ponto largo e corrido, o cabelo loiro impecavelmente penteado pelo António José. Bonita. Muito bonita. Bonita como eu nunca haveria de ser. Senhora como eu nunca fui.

Tem sido estranha a nossa relação. Não damos beijos uma à outra, não me lembro de algum dia o termos feito, não trocamos mimos, não dizemos que temos saudades. Mas em quase sete anos de Algarve raros foram os dias que não falámos. Sei onde está, o que fez, como se sente. Telefono-lhe se estou feliz ou se estou triste, mesmo que passe todo o telefonema a falar de flores e passarinhos, ela telefona se lhe estiverem a tocar à campainha às onze da noite. Precisamos de nos ouvir.

Tinha dezasseis anos quando, uma noite, a chamei para o pé de mim, nos sentámos à lareira, e lhe disse o que nunca nenhuma esqueceu. Expliquei, com aquele ar de quem tem dezasseis anos e pensa que sabe tudo, que só tínhamos duas opções – ou continuávamos a odiar-nos o resto da vida ou nos respeitávamos. Ela não gostava da minha maneira de ser, eu não gostava da dela. Ela tinha valores de que não abdicava, eu também tinha. Eu aceitava e respeitava os dela, ela aceitava e respeitava os meus. Fizemos um trato que nunca cumprimos mas que também nunca esquecemos. Voltámos a discutir mais um milhão de vezes, mas, como ela diz, eu sei que posso discutir contigo que te passa mas tens de perceber que com os teus irmãos não é assim.

E eu sei que não é. E eu sei que posso ouvir tudo, e já ouvi, e posso dizer tudo, e já disse, mas nunca por nunca nos vamos esquecer que somos mãe e filha e mesmo que não o digamos, mesmo que não o mostremos, não conseguimos estar muito tempo sem sabermos uma da outra.

Já há muito que não tenho dezasseis anos e apesar da minha mãe me continuar a tratar como se os tivesse, mãe é assim, já não tenho. E agora, do alto dos meus 46, consigo ver a mulher que é minha mãe.  E consigo perceber que não era preciso qualquer trato para a respeitar porque ela é a pessoa que mais respeito de todas as que já conheci. Não por ser minha mãe, mas por ser uma grande mulher.

Nunca, em qualquer situação, a minha mãe faltou quando era precisa. Podia, a seguir, meter as mãos pelos pés, que nem sempre era fácil o que se lhe pedia, mas estava lá. Estava lá poucas horas depois de eu lhe ter telefonado, lavada em lágrimas, porque me tinham dito que a minha filha tinha minutos de vida. Largou tudo, fez mais de duzentos quilómetros, deixou o marido a recuperar de uma delicada operação ao coração, e foi. Disse disparates, magoou-me, perdeu o norte, mas esteve comigo. E tudo o que fez, o que disse, sei agora, só o fez e o disse porque quando se está a sofrer, quando se vivem como nossas as dores dos nossos filhos, ficamos sem saber o que fazer. E ela sofreu. Por mim, por ela, por aquele toco de gente que também já era dela.

E esteve lá quando, de repente, foi preciso segurar uma empresa em pleno período revolucionário, e lidar com mais de oitenta empregados sem nunca ter sabido o que era trabalhar. Mas esteve. Mas foi. E ainda hoje conta como entrava todos os dias na sala dela, da senhora gerente, a morrer de medo, mas nunca as várias greves ameaçadas se concretizaram, nunca teve um problema sério e ainda hoje é A Senhora por quem todos eles, sem excepção, eram capazes de tirar a camisa. É ela. A minha mãe.

A minha mãe que ainda trabalha e faz questão de o fazer mesmo não tendo sido criada assim. A minha mãe que fez 75 anos há uns dias e a quem fizeram uma festa surpresa porque “era justo que ela, que sempre trabalhou para fazer festas para todos, pudesse um dia ter uma festa sem ter de fazer o que fosse”. A minha mãe que teve toda a gente lá com ela, e toda é toda mesmo, só porque era ela, menos eu que não pude ir. Mas que passei um dia inteiro a desejar ter ido. E a quem ela tenta explicar, como se fosse razoável, que não me podia ter avisado antes porque não sabia que lhe iam fazer uma festa. E insiste em justificar-se como se fosse culpada de alguma coisa. Mas não é, é só mãe e mãe é assim, não pode ver um filho triste sem sentir que teve qualquer culpa e que devia ter feito qualquer coisa.

E há muitos anos, numa madrugada qualquer, percebi como era surreal ser filha da minha mãe. Estava em viagem, com o pai das ainda não nascidas minhas filhas, e parámos numa estação de serviço de uma das poucas auto estradas da altura. Pedimos os cafés da praxe e a menina da caixa ficou a olhar para nós. Era o olhar do costume. O olhar de quem quer perguntar mas tem vergonha. E eu engatilhei a resposta usual, a que já saía sem pensar “Sim, é o senhor da televisão, e agora, diz quanto é?”  Mas ela continuava a olhar, e voltava a mirar, sem se decidir. Até que, finalmente, abriu a boca e dirigiu-se a mim: “ Desculpe, é filha da Sra. D. Aneth, não é?”

Sou. Sou filha da Senhora Dona Aneth. E tenho pena, muita pena, de não ser como ela. De não conseguir ser uma mulher como a minha mãe, uma senhora como a minha mãe, uma mãe como a minha mãe. Mas espero, que há sempre esperança, conseguir ainda vir a ser uma avó como a minha mãe.

Obrigada por tudo, mãe. E, mesmo que nunca lhe tenha dito e duvide que algum dia o faça, gosto muito de si.

22 comentários:

sem-se-ver disse...

1. (F) (usas msn, sabes ao que equivale)

2. Tlf-lhe e diz-lhe.

3. Eu telefonei à minha Mãe mas ela não falou comigo. a minha Mãe perdeu a fala num avc há 5 anos. costuma fazer uns sons. hoje não fez. o meu pai diz que ela se sorriu.

4. Tlf-lhe e diz-lhe.

Teresa disse...

(porra!)
ainda não telefonei à minha...

Teresa disse...

1. e não, não sei....

Anônimo disse...

Ola Tereza. Hoje mandei um texto para o ar mentalmente dedicado à minha mãe em primeiro lugar, e a mais duas pessoas, não escrevi os nomes não é preciso e seria desavisado. Ainda não saiu nem é isso que importa, importava era mandar.

Lavei a loiça, lavei a roupa, lavei a casa de banho e até fiquei a cheirar a lexívia, nunca pensei gostar tanto de lexívia, fui até à mata onde costumava passear de braço dado com ela e apanhei um bocado de lixo, ela detestava lixo e lelizmente agora já quase não tem.

Depois sentei-me numa pedra e estivémos em silêncio calmos mas felizes. Digo no plural sim, doutra maneira não faz sentido falar da imensa alegria serena e discreta que me invadia.

Perde a vergonha de fazer saber à tua mãe em vida que lhe tens amor, elas sabem mas às vezes têm muitas dúvidas e sofrem muito com isso.

Claro que há sempre a possibilidade de nos reconciliarmos depois, fiquei eu a saber, mas se fôr antes é tempo ganho ao sofrimento.

Em qualquer caso o arco-íris está ao alcance, trata-se apenas de ser antes ou depois.

beijos,

gaija do norte disse...

telefona-lhe e diz-lhe. tenho a certeza que a tua mãe sabe mas é tão bom dizer.

Teresa disse...

Acreditem, desde a ssv que tento telefonar. Tem estado sempre interrompido. Se não são os deuses do Z a falar não percebo...
(e obrigada z por teres sido zé. beijo grande, que só à minha mãe não dou beijos...)

Mente Quase Perigosa disse...

Raisparta esta gente que me põe a choramingar todos os dias...

Tira o próximo fim-de-semana e vai lá. Diz-lhe. Ainda que ela te olhe como se fosses um extra-terrestre acabadinho de sair da nave-mãe.

Mas diz-lhe.

Anônimo disse...

acaba assim, não são um conjunto mas são uma classe!

bj

PS:a torta já foi, agora é xonar e amanhã sou cão d´água...

Teresa disse...

Mente, era pior que um extra terrestre. Ia logo pensar que eu estava a morrer e com poucos, muito poucos, dias de vida. E não se faz isso a uma mãe.

Teresa disse...

Z, sempre soube que entre mim e ela as diferenças eram mesmo só teóricas... chame-mos-lhe classe, se quiseres, mas será sempre numa linguagem biunívoca - zero, um... zero, um... adivinha para quem é o zero

shark disse...

Tenho que calar-me, Chefa.
Sabes que não sou um bom exemplo nesta matéria...
E ainda pior conselheiro.

(Mas a prosa tá baril!)

Teresa disse...

Ai Tubarão, como eu às vezes te percebo.

(mas está, não está?)

CGM disse...

Muito bom post, Tereza!

Partilho a dificuldade do telefonema. Mas porquê?

Cristina disse...

:) Gostei muito. Só com a maturidade, conseguimos entender os nossos pais...

Cristina

Anônimo disse...

Não te esqueças que ela é Carneiro, fogo de primavera, depois com o tempero todo da carta astral que isso já não sei, mas são impetuosos e querem transmitir-nos aquela energia, acham que a vida é essencialmente generosa e ainda por cima sentem-se na obrigação de nos picar para nosso bem, mas é lá na concepção delas,

nas Carneiros o coração bate muito depressa, não é por mal,

tu és Urano o que para ela será absolutamente desconcertante,

eu amo a Natureza e foi da minha mãe que recebi esse encantamento, tem um valor infinito, vá lá que há infinitos infinitos e tudo junto dá os números surreais onde cabe tudo numa classe,

classe é uma palavra que ela gostava muito, aristotélica.

bem, mexer

Marias disse...

A tua mãe intimidava um bocado, mandava a Adelaide dar-nos lanche e fumava... Mas o teu pai, não me lembro disso, devia ser com vocês. Uma vez levou-me de carro para a Figueira, eu tinha uns 8/10, e foi calado toda a viagem e eu também.

Teresa disse...

O meu pai era capaz de viajar horas seguidas sem abrir a boca. Por isso é que eu gostava de viajar com ele. E a minha mãe nunca fumou. Tem uma única fotografia, com o tal vestido branco, numa festa da Tia Dolores, com um cigarro na mão, mas não fumava.

Teresa disse...

Mãe da Malta, há coisas que se são demasiado complicadas de se fazerem. Sei bem.

Teresa disse...

Cristina, é isso mesmo, começamos a ficar mais como eles.

Teresa disse...

Z, percebo pouco de signos mas sim, ela é Carneiro e eu tenho muitas dificuldades de manter relações "normais" com Carneiros.

Unknown disse...

Telefona-lhe e assim que puderes vai lá e dá-lhe aquele beijo falta...

Anônimo disse...

pois eu também ainda estou a ver como me dou com Carneiros et al., mas agora ando a tentar dar uma de compaixão universal, é muito bom quando realmente se consegue, mas ainda tropeço. Para o ano fazes capicua, e fazes a kpk do presidente dos EUA, vai ser um bom ano por certo para ti, eu já conto estar com uma pata tropical, se calhar a outra cá, por causa deste fado das saudades, nunca vi coisa tão sentimental como os portugueses onde inelutavelmente me incluo.