Relato de uma náufraga

Ontem fizeram-me a pergunta do milhão de dólares. A pergunta que eu evito fazer a mim mesma porque me embrulho toda nas respostas e acabo no mesmo lugar de onde parti.

“Não te imaginas a viver noutro sítio?”

Pois eu imagino, até porque a minha imaginação é um bicho muito desassossegado, eu imagino tudo e mais alguma coisinha, só ainda não consegui arranjar um GPS que me leve direita até lá e portanto, pelo sim pelo não e tendo em conta que o norte já o perdi há muito, vou ficando por aqui.

Mas a pergunta, a tal pergunta, fez-me pensar nas minhas mudanças todas. Os sítios por onde já passei, os sítios onde já fui feliz, os que me deixaram saudades, os que nem por isso.

O primeiro de todos é a minha terra. Descobri que tinha uma terra quando fui viver para Lisboa, porque lá toda a gente tem uma terra. Primeiro estranhava aquela coisa da terra, imaginava-me sempre a voltar de lá carregada de bilhas de azeite e résteas de cebolas, mas o hábito, o hábito é terrível, conseguiu com que até desse respostas sérias quando me perguntavam se ia à terra no fim de semana. E voltando à terra, que é como quem diz deixando de tergiversar (como gosto desta palavra) e pondo os pés naquele chão onde cresci, quatrocentos e alguns quilómetros lá para Norte daqui, penso se gostava de voltar a viver na terra. Os tremores e as gotas de suor frio que subitamente me escorrem da testa devem querer dizer alguma coisa.

E eu até gosto da terra. Gosto muito da minha terra. Não gosto de viver na minha terra mas esse é um luxo que só pode ter quem tem uma terra.

Na sexta-feira em que decidi, mais uma vez, sair da minha terra e procurar o sul mais Sul de todos tive uma conversa com o meu pai. Ele sabia que eu preciso de mudanças mas também sabia que preciso que me sacudam de onde estou e essa sempre foi a função dele. Foi ele quem me sacudiu de casa e me pôs a viver em Coimbra, quem depois me sacudiu de Coimbra para Lisboa, a seguir voltou a sacudir-me para casa, a minha terra é sempre a minha casa, e naquele dia tornou a sacudir-me dali para fora porque lá por eu tomar as decisões preciso das sacudidelas. Sabíamos os dois que essa ia ser a mudança mais difícil porque para além da bagagem do costume tinha dois novos embrulhos e esses diziam frágil em todos os lados, mas também sabíamos os dois que posso abanar mas não quebro nem deixo quebrar.

Foi na terça-feira a seguir, durante o funeral dele, que pela primeira vez tive medo de partir. Olhava para a terra, para aquele monte de terra rodeado de um mar de gente, e pensava que aquela era a terra que iria querer para mim e que aquela gente era a minha gente. Era ali que se enterravam os meus mortos e era ali que mesmo sentindo-me tão perdida e tão sozinha como me estava a sentir podia olhar à volta e ver portos de abrigo em tantos olhos.

Demorei mais três meses a descolar os pés que teimavam em não sair daquele chão e no dia em que me sentei no carro e finalmente rumei a Sul deixando para trás a terra, as gentes e os dois embrulhos frágeis com a promessa solene e cumprida de voltar todos os fins de semana até conseguir forrar de algodão qualquer esquina nova onde se pudessem magoar, liguei os limpa para-brisas convencida que a água que me toldava a vista era chuva lá fora.

Vi o arco-íris corridos poucos quilómetros, muito antes da auto-estrada que me ia trazer direitinha até aqui. Sei agora que no fim dos arco-íris não há potes de ouro mas também sei que se esta não é a minha terra e estas não são as minhas gentes este é o céu dos arco-íris e eu gosto de poder olhar para cima, de ver todas aquelas cores e imaginar os sítios onde me poderiam levar houvesse alguém que me voltasse a saber sacudir.

Até lá, até esse dia que pode nem chegar, continuo a ter a minha terra longe, o meu sítio aqui e uma imaginação desenfreada que me leva até onde nem quero ir.

6 comentários:

Me 2.0 disse...

...uff...que tenho os olhos marejados...

Fusão disse...

Aqui está um post para não ser comentado, é para ser lido e saboreado juntamente com uma lágrima fugidia.

TEREZA
Um XiCoração do tamanho do Mundo

Paulinha disse...

Forte...

deixa-me digerir isto por uns momentos...

Teresa disse...

Desculpem lá o mau jeito. Eu juro que não queria estragar a manhã de ninguém que até sei que por aí chove e aqui temos solinho, mas escorregaram-se-me os dedos.
Vou já ali fazer outro post, que por acaso até era o que estava para sair, antes que a culpa dê cabo de mim.

Vontade de disse...

Hummmm... interessante.

Violeta Extravagante disse...

A 1ª vez q o li, fiquei parada, mas com o tico e o teco a não darem conta dos meus pensamentos, que adaram para trás uns bons anos, voltaram ao tempo presente e se puseram a adivinhar o futuro.

E ainda penso o mesmo, a minha terra é Lisboa mas a minha casa é o Alentejo.

(e agora tou a fungar...deve ser da chuva...)