Há coisas que estão muito para além da minha compreensão e uma delas é como é que há gente que acorda e começa a falar. Assim, falar, frases inteiras seguidas, frases complicadas que implicam raciocínios e, pior, muito pior, frases que terminam com pontos de interrogação como se esperassem que lá por nos enfiarem perguntas ouvidos dentro nós tivéssemos respostas para dar.
Eu concedo que de manhã se emitam alguns sons, poucos. Palavras desarticuladas, monossilábicas, alguns grunhidos, pequenas onomatopeias e tudo isso num volume civilizado que é como quem diz ligeiramente sussurradas e devidamente espaçadas para que não se perturbe o dia que começa, mas se falar é insuportável cantar é pecaminoso.Cantar de manhã é uma afronta, é uma provocação perigosa, é um pedido para que sejam cometidos crimes vários que podem ir desde a agressão com a escova de dentes até ao afogamento no copo do leite.
Ando há quase quinze anos a tentar explicar isto às duas criaturas que vivem comigo e se elas já perceberam que eu não sou daquelas mães que fica feliz quando lhe entram de manhã no quarto e a acordam com um lindo tabuleiro de pequeno almoço – isto, os tabuleiros de pequeno almoço que nos enfiam cara dentro enquanto sensatamente dormimos e tresandam a ovos e à manteiga das torradas tem relevância suficiente para ser melhor desenvolvido mais tarde – ainda não estão suficientemente condicionadas, acho que foi falta de bofetadas mas tive de desistir desse eficaz instrumento educativo porque a seguir teimavam em berrar o que ainda era mais insuportável, e de vez em quando elas falam comigo quando acordo e, mais de vez em quando ainda, elas cantam. Hoje foi manhã de cantorias e eu estou perturbada, estou bastante perturbada. Tão perturbada que nem consegui chegar a casa e me vi obrigada a parar no caminho em busca da cafeína redentora. Erro, grande erro.
Uma pastelaria de manhã é uma antecâmara de tortura. Gente, muita gente, e todas aquelas bocas daquela gente a debitarem palavras a uma velocidade vertiginosa. A gaja da mesa do canto, essa mesma, parecia um daqueles tornos inquisitoriais com que se esmagavam os ossos do crânio e o efeito era o mesmo. Tinha escolhido a mesa mais afastada de todas, sentou-se sozinha e mantinha várias conversas com todas as galinhas das outras mesas. Uma voz estridente, mais fina que uma agulha, com um volume adequado para chamar nomes ao árbitro num estádio cheio. Queixava-se dos filhos, tinha dois, o que foi logo estranho para mim, acho que estava a mentir, um ainda dou de barato que ninguém tem obrigação de saber ao que vai, mas dois é impossível, ninguém sobrevive a uma manhã com uma mulher daquelas, e, imaginem, estava indignada porque os miúdos andavam os dois num psiquiatra e mesmo assim ela não via melhorias.
Eu não falo de manhã. Pedir um café se faxefavor já é complicado e é por isso que reponho os níveis de cafeína em casa, mas se tal como hoje a urgência me leva até um balcão normalmente nem preciso de abrir a boca que qualquer empregada, mesmo ucraniana, olha para mim e percebe de imediato que estou ali para um café e rápido, mas falasse eu e tinha uma palavrinha para o papagaio da mesa do canto, uma palavrinha que lhe iria mudar a vida e trazer saúde aos filhos – Cale-se!
Bolas, será assim tão complicado não me violarem os ouvidos quando acordo e manterem esse registo na hora a seguir?
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