Um dos meus livros preferidos é A Peste do Camus. É um livro que se desenrola em círculos concêntricos. A peste começa lá longe, nada tem a ver connosco e só quando nos toca de perto é que percebemos, finalmente, que o mundo dos outros é também o nosso mundo.
Há 14 anos que passo este dia de neura. Foi o último dia de uma vida que eu conheci e nunca mais voltei a encontrar. Não é que me faça falta é só porque ainda não me habituei a esta nova eu porque 15 anos, na minha vida toda, não é assim tanto tempo.
Lembro-me bem de mim. Cheia de certezas, chavões, certa que era quase imbatível, que a vida, a mim, não me trocava as voltas. Uma enorme arrogância, uma absoluta falta de humildade, a sensação de que vivia num mundo diferente do mundo dos outros.
Há 15 anos, por esta hora, estava entalada entre a parede da sala e uma estante gigantesca a martelar furiosamente os pregos que lhe iriam segurar o fundo. Três módulos de prateleiras, um metro de largura cada um, e por baixo um móvel corrido com gavetas no centro e portas duplas dos lados. Ainda sei as medidas, 3,05 m de comprimento, 2,73 m de altura. Do meu lado esquerdo tinha a janela sem cortinas ou portadas e mais longe mas ali tão perto, o Tejo. Estava mais gente na casa mas não me lembro onde estavam nem o que faziam. Eu sei o que fazia, montava a estante. Não era a melhor altura para montar um móvel daqueles mas eu queria e portanto, sem hesitações, eu podia. Lembro-me que me era complicado arranjar espaço para meter a barriga naquela pequena fresta, que tinha conquistado à custa de muito empurrar, pés fixos no chão e força nas omoplatas, entre as prateleiras e a parede. Lembro-me também que tinha vestidas umas jardineiras de ganga e tinha metido os pregos e os parafusos nos bolsos da frente e as chaves de fenda e martelo nos bolsos de trás.
A Lina e a Maria José tinha-as encontrado uns tempos antes. Não muito. Não a via desde que a Maria José tinha nascido porque nessa altura eu já vivia em Lisboa e elas viviam na terra. A conversa com a minha mãe foi na cozinha lá de casa, o lá de casa como era na altura, como ainda é hoje, porque lá em casa será sempre ali, mesmo que pouco tempo lá tenha vivido. Falei-lhe do encontro e de como achei a Lina mais triste do que a Lina que eu conhecera e de como devia ser difícil ter uma filha como a Maria José. A barriga, a mesma barriga que me incomodava a montar a estante, já ali estava, bem visível, quase a rebentar. Nem por um momento pensei nela. A Lina era a Lina, eu era eu, e a mim, como disse, a vida não me trocava as voltas.
Amanhã faz 15 anos que a Clara nasceu. Amanhã faz 15 anos que fui mãe. Amanhã faz 15 anos que a vida me ensinou a maior lição de todas e me apanhou, pela primeira vez, completamente desprevenida. Já não me atrevo a montar estantes só porque quero, porque já sei que o eu quero nem sempre me abre as portas do eu posso. Já não olho para a Lina e a vejo triste porque já sei que não há razões para estar triste mas também já sei, sei muito bem, que a vida é um dia atrás do outro e os planos que temos hoje podem ruir amanhã por mais que vivamos na ilusão que a nossa vida somos nós que a controlamos e a decidimos.
5 comentários:
bonito..=)
beijinho
Xiça, já passou mais um ano?!?!?
Já passou mais um ano, sim senhora...
E eu devia mas não consigo comentar este post.
Não hoje. Não agora. Nem talvez nunca.
Não quando olho nos olhos sacanas dela e penso no Chocolate à chuva...
Não quando penso no quão parecidos ela e o sacana cá de casa são quando querem levar a deles avante e no cagaçal que fazem juntos...
Porque a única coisa que me ocorre neste momento é uma música dos Rolling Stones.
parabéns à mãe Tereza, parabéns à Clara, haja Sol, saúde e alegria.
também estou nas estantes,
bjos
É só para dar um Beijo e um Abraceijo à Teresa
Violeta
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