Metade de toda a minha vida foi feita de rotinas. Tudo era certo e cumpria um plano e um calendário há muito estabelecidos.
Acho que quando nasci ninguém perderia dinheiro se apostasse que, vinte e poucos anos depois, muito poucos, que não havia borlas para ninguém, estaria a acabar um curso qualquer na Universidade de Coimbra (apesar de duvidar muito que alguém, no seu perfeito juízo, pusesse as fichas em Direito), que continuaria a ter uma forte ligação à casa dos meus pais e à família toda e que cumpriria todos os rituais há muito estabelecidos.
Era tudo certo, certinho, mas tem graça, acho que também era tudo muito mais simples quando já se sabia o que ia acontecer.
Aos Domingos almoçávamos em casa dos avós. A Páscoa era passada um ano em casa outro na Covilhã, era só fazer as contas. Férias começavam em Julho na Figueira e estendiam-se até 31 de Agosto. Impreterivelmente. Quinze dias, que podiam ir de Junho a Setembro, conforme a escala da “Casa dos Irmãos”, estavam reservados para a Praia da Oura e o mês de Setembro para a Quinta. A 7 de Outubro começavam as aulas e já estava tudo em casa outra vez e o Natal era Covilhã. Os meus pais passavam o Fim d’Ano no Casino da Figueira e no Carnaval íamos todos para Gatões. Idas ao estrangeiro eram duas ou três vezes por ano, de férias ou nalgum congresso, mas nós miúdos só tinhamos os recuerdos que passaporte nem vê-lo, aquilo era para eles, os pais.
Simples. A vida era simples.
Nem a minha saída de casa, para ir viver e estudar para Coimbra, e a seguir as dos meus irmãos, alterou muito este fazer.
Morreram avós, nasceram primos, houve uma Revolução, comecei a viver sozinha, a Electro foi nacionalizada, a casa dos avós do Natal ardeu, o tio Luís casou-se (esta foi complicada de encaixar que o tipo era nosso, dos novos, dos miúdos) mas nada mudou estruturalmente.
Ia mudando a conjuntura, como fica bem dizer, mas o resto, a espinha dorsal, estava lá toda. A minha casa era a de lá, aquela onde ainda estavam (e estão…) as minhas coisas, as férias eram nos mesmo sítios e nas mesmas alturas (inconcebível imaginar que Agosto não era Figueira!), o Natal passou a ser lá em casa, mas os pratos eram os mesmos, o faqueiro tinha de ser o de prata ( sou muito mete nojo!…) e os copos os de cristal. As pessoas também eram as mesmas e eram sempre muitas.
Agora que penso nisso acho que a primeira grande mudança, maior que outra qualquer, foi a Adelaide ter ido embora. A Adelaide (que será feito dela?!) estava lá desde o princípio. Desde o dia em que a minha mãe se casou e trouxe com ela, da Serra, a empregada (criada, pois claro.).
A Adelaide esteve por lá 22 anos. As outras, “as de fora”, iam e vinham, mas a Adelaide não.
A Adelaide criou-nos, mudou-nos as fraldas, ensinou-nos a andar e a falar, dormiu no nosso quarto quando estávamos doentes, jantava e almoçava connosco na copa, que a sala de jantar era para os crescidos, nela não se sentavam à mesa crianças e criadagem, limpou-nos as feridas e o rabo, deu-nos banho e levou-nos a "àguichá" à noite à cama. A Adelaide era a nossa ponte para o mundo deles e a ponte deles para o nosso mundo.
A Adelaide era, definitivamente, a dona lá de casa.
E a Adelaide era uma cabra.
A maior cabra que conheci, a cabra que me ensinou a ser cabra!
A gaja mais estuporada que comigo se cruzou, com quem tive as piores discussões da vida, muito piores que com qualquer gajo, o polícia que me vigiava as horas de entrada, a bufa que fazia o relatório, a maldita que me escondia as cartas dos namorados, a compincha que nos compreendia, a melhor cozinheira do mundo, a desgraçada que não vejo há sete anos e de quem tenho muitas saudades.
A Adelaide que foi embora um dia, não sei qual.
A Adelaide que já não estava lá quando nós chegámos de Londres, que saiu sem se despedir porque se se despedisse nunca teria conseguido sair.
A Adelaide que não nos viu formar, que não conhece os nossos filhos, que apareceu de fugida, há sete anos atrás, quando o Senhor Engenheiro morreu, e que eu não reconheci.
Sim, acho que foi a saída dela que quebrou as rotinas. Acho que foi a partir daí que tudo se alterou. Ou, pelo menos, foi a mudança da fase.
Saiu a Adelaide entrou a Irene, mas a Irene é mais nova, a Irene não manda (muito!…), a Irene não está lá desde o princípio, a Irene aterroriza os nossos filhos, mas a nós pede-nos conselhos.
A Irene não é a Adelaide. A Irene não me conseguiu segurar como a Adelaide me teria segurado. De certezinha.
E as minhas rotinas finalmente quebraram-se. Se os meus anos eram previsíveis, agora nem os meus dias o são. Tanto lastro, tanta raiz, tanta certeza, deram-me talvez a segurança ou a fartura que me fez não querer mais que um dia atrás do outro.
E passei por cima de tudo o que me pudesse fixar, calendarizar, planear. Os dez anos a seguir, dez!, passei-os sem ter ficado mais que 15 dias seguidos no mesmo sítio, e esses 15 dias eram as férias. Todos os fins de semana, sem excepção, fazia o saco, já de olhos fechados, e ia.
Para casa, normalmente, a tal casa que já não era a minha mas onde ainda tenho as minhas coisas, ou para outro sítio qualquer.
Ia.
Fui.
De Coimbra para casa. De Lisboa para casa. Para casa, mesmo que a casa já não fosse a minha e já tivesse outras casas, ou para outras casas quaisquer.
A única regra era que ali, onde estava, fosse o onde o que fosse, não podia ficar.
Mudei. Grito do Ipiranga ou medo do que já sabia que não iria ter, mas mudei tudo.
E nunca na minha vida assinei um contrato de trabalho, nunca me casei, nunca comprei uma casa. Não tenho PPR’s nem contas a prazo, não compro carros a prestações, não marco férias, não sei onde vou passar o próximo fim de semana ou onde estarei a viver daqui a um ano.
O Natal logo se vê, a Páscoa é ao Domingo e pronto, emprego não tenho e trabalho há sempre, seja ele qual for.
Tenho duas certezas, duas certezas que todos os dias vejo crescer e que são a minha casa, o meu lar, a minha vida, o meu mundo, as minhas únicas rotinas.
Tudo o resto, que sera sera.
Mas tenho saudades. Tenho muitas saudades
54 comentários:
Grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande, grande post Tereza.
(e não estou a falar do tamanho)
Mais que grande, GRANDIOSO. Ainda ontem eu dizia que queria escrever exactamente isto. Porque tenho uma Adelaide chamada Rosa (que felizmente não se foi embora), porque tenho mais um milhão de coisas lindas assim e sou uma estúpida e não escrevo sobre elas.
'Tás a ver o porquê das vénias?...
Tereza, foi delicioso lê-la.
(Gostava que soubesse)
Está melhor que o do Chico.
(E gosto muito da versão do Chico...)
Bolas, cabra estuporada que me puseste a lágrima a picar a córnea, não que ela se faça muito difícil, mas bolas.
(sabes que há uns meses comecei uma série sobre as adelaides e as irenes da vida e ainda postei a das adelaides e tenho a posta das irenes quase terminada mas depois meteu-se isto e mais aquilo e...)
Muito prazer:)
Nómada portanto?
belo, belíssimo escrito, tereza. adorei ler-te a discorrer sobre coisas como estas. conheço bem algumas, estivemos juntos em outras. mas mesmo que não fosse o caso, tereza, este é um belíssimo escrito!
BRAVO!!
Chefa, és um colosso.
Tás outra vez em forma, hã?
:)
Baralhando, que rotinas deixaram de ser o meu forte.
fj, que bom voltar a ver-te.
Sim, tu conheces a fase Coimbra, Figueira e Lisboa, mesmo conhecendo muito pouco de cada uma delas. Mas é bom, muito bom, saber que hoje, aqui, está alguém que passou por lá.
E tem piada não nos vermos há tantos anos (estás gordo e careca ou continuas tipo espeto com uma guitarra às costas?), mas voltámos a encontrar-nos graças a estas modernices.
Bolas!... Por incrível que pareça deves ser das poucas pessoas que está em tantas fases da minha vida... que sarna!...
(já agora, fazes anos quando? ficavas bem lá no outro blog...)
fazes de propósito, não é? dizes que não te apetece e depois mandas com uma destas... cabra, já te disse hoje que gosto muito de ti?
não, gaija, ainda não tinhas dito, mas já estava a sentir a falta...
Senhor Visconde, gaijo (topam este gaijo? tem muito que se lhe diga, mas eu não digo...), a si devo esta minha descida ás memórias mais recônditas.
Mad, e a Rosa o quê? Estamos à espera. Desembucha, rapariga.
Olha, não custa nada. Vai por mim.
Padrinho, gaijo mai lindo de todos, tubarão do aquário dela, já te disse que me bajulas e eu babo, portanto vê se te absténs, sim? Manda-me antes daqueles emails que nós sabemos, que com esses sei o que fazer...
:))))
Cyber, ninguém, nem eu!, por estranho que pareça, é melhor que o Chico....
Peixa, atenção, respira.... já está?
Pronto, ok, tens o contrato renovado por mais seis dias.
pois é Cj, muito 25 de Abril, muito primeiro de Maio, e depois não há tempo para as coisas sérias da vida...
(e vê se postas a Irene aqui, óviste?)
Ritqualquercoisa, como diz a ssv, não sou bem nómada. Sou mais tipo cigana.
Com raízes que me lixam. E me deliciam.
elle, não me fales em espanhol que me lembro logo dele...
(Obrigada!)
Shark, li melhor...
"estás outra vez em forma"????!!!
Tinhas dúvidas, era?
um beijo, querida.
dado ele:
«Tanto lastro, tanta raiz, tanta certeza, deram-me talvez a segurança ou a fartura que me fez não querer mais que um dia atrás do outro.» compreendo esta tua reacção. mas vês como somos diferentes e nunca nos poderiamos entender? porque, para mim, "tanto lastro, tanta raiz, tanta certeza, deram-me talvez a segurança ou a fartura que me fez não querer mais que" os perseguir durante toda a minha vida. e se tu tens saudades, muitas saudades de tanto lastro, tanta raiz, tanta certeza, que contudo voluntariamente deixaste para trás e que só saudades, muitas saudades, te fazem sentir por vezes, eu tenho pena, muita pena, de desde há cerca de 10 anos as ter perdido - que as mantive na minha vida de adulta casada - sem vislumbrar como as possa alcançar de novo.
engraçado como uma mesma realidade (digamos assim) que marcou a nossa vida familiar traçou destinos, comportamentos e expectativas tão diversos.
minha aquária linda... conta com a sensaboria desta tua amiga virginiana cuja única aspiração é a tranquilidade que só as coisas certas, rotineiras, previsíveis e asseguradas nos dão.
(como por exemplo: as minhas jukes no blog! aí está algo com que podes sempre contar! :D
Ainda nã posso respirar convenientemente... Ainda preciso de mais uns 20 cafés.
(eu já não tenho idade para estudar até às 3 da manhã e vir trabalhar às 9... ainda se for ir para os copos, dá-se um jeitinho...)
E juntamente com a renovação, há aumento salarial? 2 de Abril... 1 de Maio...
Tinha, Chefa. Tens andado arredia destes grandes momentos blogueiros que te caracterizam...
Tereza, Parabéns! É um lindissímo post, principalmente para começar bem o dia!
E nesta vida que levamos é tão bom ter essas certezas no nosso dia-a-dia!
Felicidade é o que te desejo a ti e às tuas certezas!
E sabe tão bem ler-te.
Teresa, sejas tu quem fores: és valente.
Adorei o post...
assim gosto que me chamam sarna. e espeto com uma guitarra às costas!
agora... gordo e careca, moi?!? apenas um ligeiríssimo acentuar da curva de prosperidade e um melhoramento das vias de comunicação que ligam a testa à nuca. de resto, tudo na mesma. :-))
(obrigado pelo convite para o blog do lado. bota lá então março, 22), beijos
fj tu não digas nada, que desde que vi a curva pronunciada de prosperidade e as vias de comunicação do Carlos Eduardo queeragiroquesefartava, já acredito em tudo...
E obrigada pela data... vai já para lá!
Bi, sou uma Tereza qualquer, mais nada.
Obrigada pelo comentário.
Obrigada Ana Paula. E eu gosto que gostem.
É Ana T, é bom termos algo que já não vai mudar e que ajuda a sermos mais felizes.
Obrigada pelos votos.
Tubarão, não posso tirar férias?
Peixa, está feito. Passas a ganhar o dobro, pronto!
atão e eu?
Olha outra....
Lê lá bem...
"Peixa, está feito. Passas a ganhar o dobro, pronto!"
já li e a questão mantém-se
E eu a pensar que a questão era outra...
Também queres ganhar o dobro? Feito.
Psst! Ó chefa!
Isto ou há moralidade ou comem todos...
E muito bem... tu passas para o triplo que gastas mais tinta.
Eta chefa bacana! Promovo-te a superchefa!
(os subalternos podem promover as chefias, não podem?)
(e não me respondeste a modos de quem, que tanto me custou expor-me ali daquela maneira? já não há respeito pelas inconfidencias alheias)
não está certo! eu que poupo as cabras, os cabrões, os comentadeiros e os leitores em geral só tenho direito ao dobro?
Ai, ssv... esqueci-me de ti!
Tiro-te o chapéu. Eu não consigo ser assim. Durante muito tempo, e como âncora, mantive uma única rotina - mesmo que sozinha, o que era o normal, jantava sempre sentada à mesa, na sala, e com toalha posta. Agora até nisso já me baldo um pouco mais, que ainda ontem, depois das certezas estarem na cama, jantei no sofá com um tabuleiro.
Mas ficaram por cá algumas coisas. Sei que ficaram. E preciso delas.
Tereza,
Uma (pequeníssima) amostra da minha Rosinha, com fotografia e tudo, mas fora das luzes da ribalta.
http://umatuganostropicos.blogspot.com/2009/04/empada-de-galinha-da-rosa-melhor-do.html
Só um amuse bouche :)
(mas olha que me lembrei de ti antes de teres feito o comentário como podes ver pelo minuto de diferença...)
olha aqui :), acho que estamos bem representados,
Só podia ser português...
Mas olha que o Obama também parece um dos nossos, a fazer piadas sobre a "horta da Michelle"
é o gajo é porreiro além de ser giro e Ob dá Bo, o amigo
agora vou ver um filme chamado 'o bom pastor' espero que não seja um terror,
Infelizmente acho que vai ser lentamente sangrado pelo sistema. Cem dias depois já diz que percebeu que em Washington as mudanças se fazem muito devagar...
O bom pastor? Pode ser que seja bíblico...
sim, claro, até a esperança perde a inocência, mas a inocência não perde a esperança, em qualquer caso estou com ele,
não é não, ainda só vou a meio mas é um espião
imagina que dos últimos filmes que vi só não chorei um nico nesse do slumdog millionaire que é onde é suposto,
chorei naquele do tempo que nadava para trás com o Brad Pitt, e no Milk e num muito bom, se puderes vê: O Leitor, tem lá uma das mulheres mais bonitas que já vi na vida, bonita mesmo,
só que é sempre tudo trágico mas pronto,
para a semana desamarra-se uma âncora
És mesmo dos meus, Z. Tb chorei no Benjamin Button, que nem uma madalena, durante os últimos 30 minutos do filme nonstop...
benjamin button foi o filme que mais me tocou este ano.
a dúvida, o que mais me questionou.
the reader, o que mais me perturbou.
só me vieram as lágrimas aos olhos neste último.
(mas a citação que guardei na memória não é de nenhum destes três, e sim do 'revolutionnary road')
Fenomenal! lindo!
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