Hoje deu-me para aqui, deve ter sido dos tremores da noite

Anda para aí tudo muito satisfeito porque parece que, finalmente, a Justiça em Portugal começou a funcionar e o Ministério Público conseguiu, em tempo recorde, deduzir (é assim que fala quem fala bem) acusação contra um farmacêutico e uma ajudante de farmácia responsáveis pela troca de medicamentos que provocou cegueira a seis doentes do Santa Maria. Pelo que parece, e digo parece porque cada vez confio menos no que leio nos jornais, estão ambos acusados pela prática, com dolo eventual, de seis crimes de ofensa à integridade física grave.
Eu, que até já nem percebo muito da poda mas ainda tenho umas luzes, acho que os senhores procuradores estão metidos numa carga de trabalhos e ou sabem isso mas quiseram acenar ao povinho com possíveis penas de cadeia - de dois a dez anos - exemplares ou nem sequer perceberam o molhe de bróculos onde estão metidos, o que é ainda pior. O que sei é que são estas e outras que me levam a ficar cada vez mais assustada com quem anda por aí a fazer a justiça.

Acabei de almoçar, tenho mais que fazer - sim, Peixa, tenho o tal post das réplicas... - e não acho que deva mergulhar doutrina adentro mas lá em cima, naquela acusação exemplar, há duas palavrinhas que me estão a fazer cócegas e que são "dolo eventual". Eu não sei onde estudaram os ilustres acusadores deste caso mas os mestres que ensinavam lá na minha escola tiveram o cuidado de nos fazer perceber bem que isso do dolo eventual era um berbicacho do caraças. Segundo o Figueiredo Dias, que é assim a modos que o pai do nosso Código Penal, para haver dolo eventual, e vou simplificar, é preciso que o agente se tenha conformado com o risco de produção do resultado actuando sem confiar que aquele não se produziria. Para quem não percebia muito bem isto ele dava até o exemplo do Guilherme Tell - o tipo pôs a maçã em cima da cabeça do filho e aceitou o desafio de acertar nela. Apesar do nosso Guilherme saber que podia errar, que essa era uma probabilidade, um possível resultado da sua conduta, e de não querer de todo magoar o filho, ele decidiu disparar na mesma o arco porque esse era um mal menor perante a desonra que seria não aceitar o desafio.
Por outro lado, se o agente actua com a confiança - mesmo que leviana - de que as consequências possíveis não se produzirão - e tenho estado a citar o FG - porque se se produzissem ele alteraria a sua conduta, então não há dolo eventual mas sim negligência consciente o que atenua bastante a culpa e, consequentemente, a pena.

Resumindo, mesmo que não concluindo. Nesta acusação vai ter de ser provado, sem margem para dúvidas, que aquele farmacêutico e aquela técnica por quererem despachar serviço e ir cedo para casa previram que em resultado dessa pressa podiam trocar os medicamentos e que essa troca iria causar cegueira irreversível aos doentes. Para além disso vai ter de ser provado que aqueles dois apesar de terem conscientemente posto essa possibilidade não alteraram a sua conduta por terem considerado que esse resultado hipotético, que eles não queriam que acontecesse mas que era provável, seria um mal menor em relação ao fim que queriam atingir - saírem dali a horas.
Agora digam-me, acreditam que foi isto que aconteceu? Acreditam que o Ministério Público acredita que foi isto que aconteceu? Acreditam que o Ministério Público acredita que vai conseguir provar o tal dolo eventual?
Sabem no que eu acredito mesmo sem conhecer os factos? Acredito que aqueles dois podem, quanto muito, ter actuado com negligência grave e que justo seria virem por ela acusados, mas acredito também que se forem por ela condenados e saírem do Tribunal com penas suspensas, o que faria sentido, lá vai o povinho dizer que os sacanas dos advogados de defesa enganaram, mais uma vez, o Tribunal.

E no meio disto tudo só acho piada as pessoas ainda me continuarem a perguntar porque é que me fartei de Tribunais. É que dez anos disto não chegaram, sobraram!

7 comentários:

Rachel disse...

É pá, Teresa, escreveste o post que eu queria ter escrito, se escrevesse sobre estas coisas.

Ainda hoje eu e o meu pai falávamos sobre o absurdo da badalação da acusação, qdo no fim... dolo eventual!

A sério, sejam sérios, pá.

Teresa disse...

Rachel, por vezes, quando escrevo posts, penso em determinadas pessoas. Quando escrevi este pensei em ti. Achei que ias perceber o meu asco. Não me enganei.

Sérgio disse...

Olá

Só para agradecer a explicação de dolo eventual.

Obrigado

Teresa disse...

De nada Sérgio, desde que a seguir não tenha de explicar o que é um crime preterintencional...

Mente Quase Perigosa disse...

Explica, explica...

Teresa disse...

E pagas bem?

Anônimo disse...

Viva, Tereza,
Concordo. A escolha daquele e não de outro elemento subjectivo associado ao tipo de crime por cuja prática se entendeu dever acusar os arguidos do HSM não foi ingénua, e muito menos apressada. O MP teve todo o tempo do mundo para deduzir a acusação nos termos em que o fez e o dolo eventual também me pareceu algo cuja prova se (me) afigura uma perfeita… eventualidade.
De vez em quando venho por aqui com muito gosto, muito proveito, mas muito pouco tempo.
Cordiais saudações.
JAKIM.