A vida em A4

Há uns anos, depois de ter usado uma procuração de um casal inglês para lhes comprar uma casa, registar a casa, pagar os devidos impostos e tratar das picuinhices todas que a compra de uma casa implica, dirigi-me a uma Câmara Municipal para fazer o contrato da água. Atendimento personalizado, cadeira em frente da funcionária, procuração em cima da secretária e a aventura começa assim que no computador, bicho medonho, aparece o respectivo formulário.
 - Cópia do BI
 - Não tenho. Nem eles têm, que são ingleses. Tenho procuração com números de passaportes.
- Não posso continuar.
Continuou. Esta era simples de resolver.
- Nome dos pais
- Como?
- Nome dos pais
- Han?!!!
- Preciso do nome dos pais do senhor. Está a ver porque lhe pedi o BI? Se o tivesse estava lá isto tudo...
Outra pequena troca de comentários mas um pouco mais surrealista que a anterior. O sistema pedia e o sistema quando pede tem de ser satisfeito. Não foi, o que lhe deve ter provocado um trauma qualquer, e seguimos para bingo.
- Data de nascimento.
- Está a brincar, não está?
- Preciso da data de nascimento.
- A Câmara quer mandar um postal de aniversário, é? 
Soube depois que mandava mesmo e talvez tenha sido o comentário certeiro que me ajudou a sair de lá com o maldito contrato de água na mão. Apesar de não encaixar no "sistema".

Há poucos dias fui inscrever a Clara numas actividades de tempos livres. Primeira entrevista com a psicóloga lá do sítio. Lápis na mão, folha branca em frente e uma catrefada de perguntas na ponta da língua.
- A mãe é casada, divorciada, viúva ou vive em união de facto?
- Nenhuma das quatro, solteira.
- Ah, então é união de facto.
- Não, não é nem união nem de facto, é sozinha mesmo. Já foi, já não é.
- Separada?
- Sem dúvida.
- Mas vou ter um problema. "Separado" é para casados não divorciados...
- Pois não sei, desculpe lá o mau jeito.
- Vamos então caracterizar a família.
(e é aqui que a incauta começa a fazer uns desenhos na folha. Uma bolinha para a mãe, outra para o pai, a Clara outra bolinha no meio das duas e o lápis pronto para seguir caminho)
- Tem mais irmãos?
- 4 (mais quatro bolinhas a sair das outras duas). Só um deles, ou uma delas, é minha filha. O desenho está mal.
- Ah, já percebi, separou-se do pai e ele está junto com outra senhora de quem teve três filhos.
- Não. Dois irmãos são mais velhos e duas irmãs mais novas. Uma delas é filha deste casal, minha e do pai, a outra não.
- Então o pai está junto com uma senhora e tiveram uma filha.
- Não, tiveram uma filha mas não estão juntos.
- Então o pai vive com quem?
(a gargalhada quase que saiu mas continuei a conseguir segurá-la)
- Não faço a mínima ideia.
( o desenho já era uma enorme confusão de riscos, bolas, filhos a sair dos sítios mais improváveis.)
- Vamos rever. O pai, antes de si, viveu com uma senhora de quem teve dois filhos.
- Não. Antes de mim não sei, e não tenho grande interesse em saber, com quantas senhoras (estas "senhoras" todas, eu incluída, estavam a fazer-me comichões) o pai viveu. Antes da Clara o pai dela já tinha dois filhos, cada um deles com uma mãe diferente. Depois nasceu a Clara, a seguir a Francisca, também minha filha, e depois a mais nova, que tem outra mãe e não, não é nenhuma das anteriores. Quantas "senhoras" foram metidas ao barulho não faço ideia tal como só conheço o número oficial de descendentes. Esclarecidas?
- Sim, acho que já percebi, agora só não sei como vou passar isto para o computador....

Esta mania de normalizar tudo intriga-me. Parece que temos uma necessidade secreta de arrumar o mundo em pastas de arquivo e quanto mais diversa é a vida mais se teima em a enfiar num formulário qualquer onde possa ser catalogada. Colámos-nos a determinados conceitos e fazemos a nossa segurança depender deles.
Pai e mãe, por exemplo.
Que significa, hoje, pai e mãe? Ou alargamos estes conceitos de tal maneira que metemos lá tudo, e então temos o pai biológico, a mãe afectiva, o pai de acolhimento, a mãe óvulo, a mãe útero e a mãe que dá a sopa, o pai 1 e o pai 2, o pai que vive com a mãe, a mãe que vive com a mãe que pode ser mãe ou não, o pai que é pai porque é pai do irmão, e por aí fora que os afectos não têm limites e a vida também não, ou cortamos finalmente o cordão umbilical, deixamos de tentar esconder-nos atrás de nomes que não passam disso, nomes, que de tão esticados já quase que desapareceram, e voltamos às origens - a família, seja lá ela como for e venha a criança de onde vier. Afinal nós até temos uma herança cultural que nos devia permitir viver confortáveis sem necessitarmos de estereótipos. Todos nós conhecemos uma família, e muitos até lhe chamam sagrada, que de comum tem muito pouco - Jesus Cristo, filho de Maria, foi concebido pelo Espírito Santo, era filho de Deus mas foi criado por José e acho que não é por acaso que nunca lhes ouvi chamar o pai biológico, o pai afectivo e o pai de acolhimento.
Dogmas da fé? Não sei, mas era uma família, não era? E se era assim há dois mil anos porque raio precisamos nós de continuar a fazer desenhos para entender o que pode ser tão simples?
Temos andado todos a discutir a família quando o que devia estar em discussão eram os famigerados formulários - acabe-se com os quadradinhos, com o Pai, Mãe e etecetras e arranje-se um espaço em branco onde se escreva, e inscreva, a família, porque a vida, a nossa vida, é isso mesmo - um espaço em branco onde tudo pode caber.

12 comentários:

sem-se-ver disse...

olha tu no teu melhor :)

Jácome D`Alva disse...

Bem, esse diálogo com a psicologa é absolutamente surrealista. Coitada da senhora deve ter ficado mesmo baralhada. E aquele remate de ser necessário reconfigurar o computador para caber lá tanta informação é um pormrnor de génio. Felizmente "eles" vão-se reconfigurando porque como escreves na nossa vida tem de caber lá tudo.

Nota: Se aqui por Africa, onde a poligamia é praticada e tolerada na maioria dos paises, fizessem esse tipo de inquéritos, nem imagino o numero de variantes que o software tinha de prevêr.

CybeRider disse...

Mas já há a famigerada folhinha A4 em branco, pena é que ninguém a use no seu potencial.

Anônimo disse...

Belo texto Tereza. & bjo

Marias disse...

Ah, pois. E ser divorciada também é giro. Fui à primeira reunião do ano da filha, em substituição do pai que estava a trabalhar (e há-de estar sempre)e tenho de assinar "com a assinatura do Encarregado de educação que irá depois ser usada nos testes e justificações". Hesitei um bocadinho, deveria imitar o rabisco ilegível do meu ex e pai E.E. da filha? Não, pus o meu próprio rabisco. Afinal, ela passa a semana comigo e eu é assino os tais testes e justificações. E ninguém tem dito nada.

Teresa disse...

Deve ser do sol, SSV

Teresa disse...

Jácome, essa pode ser uma ideia - mandar esta gente fazer um estágio de Mundo. Pode ser que entendam algumas coisinhas.

Teresa disse...

Cyber, como arquivas uma folha A4 numa pasta A5? Continuamos com uma problema, não é?

Teresa disse...

Olá gato.

Teresa disse...

Gabs, e porque é que é o pai o encarregado de educação?

calamity jane disse...

:-)))
Realmente essa psicóloga andava a precisar de uma reciclagenzita... um tanto ou quanto limitada, a senhora.

Marias disse...

Já vem de trás... ele inscreveu a filha no J.I. e deu-se como E.E. e assim tem ficado. Eu fiquei do filho. Mas claro que eu é que vou às reuniões dos dois, ele marcam para as seis da tarde, vejam a lata deles...