Turquia condenada por impor serviço militar a pastor 71 anos.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou terça-feira a Turquia por ter obrigado um pastor curdo de 71 anos, que vivia isolado, a cumprir o serviço militar, onde foi alvo de escárnio e de tratamentos que obrigaram à sua hospitalização. O recrutamento de Hamdi Tastan e a exigência de que participasse em exercícios reservados a soldados muito mais novos foram considerados «particularmente dolorosos e atentatórios da dignidade» do pastor, que não padecia de nenhuma doença mas foi hospitalizado após ter feito o serviço militar entre 15 de Março e 26 de Abril de 2000.
Hamdi Tastan, que é analfabeto e apenas fala curdo, foi pastor desde a infância e, a troco do seu trabalho, os proprietários do gado davam-lhe comida, roupa e um tecto no Inverno. Porém, quando a mulher morreu ao dar à luz o filho de ambos, teve de deixar de trabalhar para se ocupar da criança e os patrões denunciaram-no como desertor, contou Hamdi Tastan, que agora deverá receber da Turquia cinco mil euros por danos morais e mais mil euros referentes a custas judiciais.
A história deste pastor fez-me lembrar o meu pastor e as guerras dele com a guerra.
Não sei como é agora, mas há vinte anos, quando a tropa era obrigatória, ficavam dispensados de cumprir o serviço militar todos os mancebos que não tivessem a 4ª classe. Sempre achei alguma graça às prioridades do nosso Estado, que julgava como desertor quem fugisse à guerra e olhava com complacência quem fugisse à escola, que mais um analfabeto não fazia grande dano à pátria.
Certo é que podemos ser analfabetos, mas não somos burros e muitos se safaram de marchar invocando um total e completo desconhecimento das letras.
O meu pastor não teve essa sorte. Conheci-o quando o acusaram de falsas declarações, que tinha dito ao sargento que só sabia pastorear ovelhas, que escola tinha sido quase nenhuma, mas os documentos diziam outra coisa - tinha a escolaridade obrigatória sim senhor.
A primeira vez que o encontrei estava com a mãe. Tinham apanhado um comboio de madrugada para irem a Coimbra, falar com aquela advogada menina que lhes tinha calhado na rifa das nomeações oficiosas.
Juraram-me os dois a pés juntos que não havia 4ª classe nenhuma e que só podia ser engano dos senhores que escreviam aquelas folhas. O rapaz não mente e somos gente de respeito, ninguém quer fugir à tropa. Foi a mãe que me convenceu quando, já de saída, me assegurou com ar triste que este filho fora o mais prejudicado, que o irmão sim, tinha a 4º classe e fato novo, mas este senhora doutora, como pode ter feito o exame se nunca teve um fato novo na vida?
Não era preciso tanto para ir meter o nariz no processo escolar dele, mas assim tinha mesmo que ser, que o meu pastor não havia de ser condenado por uma mentira que não disse.
A explicação era simples e chamava-se passagem administrativa. Na altura em que devia ter ido para a escola, princípios dos anos oitenta, o ensino até já era obrigatório, mas pouco ou nada se obrigava. A matricula do pastor andou a correr secretárias de professores, mas a ele, ao próprio, só as ovelhas o viam. Quando fez 15 anos um funcionário mais expediente achou por bem recompensá-lo e deu-lhe com um carimbo as letras que ele não tinha. Só se esqueceram de o avisar, que este não era o pastor do Tou Chim e o telefonema ficou por fazer.
No dia do julgamento, e no mesmo comboio da madrugada, veio a família toda e os homens bons da aldeia para jurarem pela honra que o rapaz não sabia ler e não quis enganar ninguém. Foi uma das testemunhas que me marcou este processo para sempre. Era o decano da aldeia, um beirão pequenino, talhado no granito da serra, homem digno e respeitado, que tinha aceite dar a sua palavra pela palavra do pastor.
Quando o chamei para o Tribunal o ouvir trazia já numa das mãos o chapéu preto, que ainda não tinha tirado, e apoiava-se num enorme guarda chuva de cabo de madeira. A sala fez silêncio e neste momento vejo novamente todo aquele filme a passar na minha memória. No banco das testemunhas o homem pequeno, de traços duros e fato de casamento, a aldeia atrás esperando ansiosa que as palavras sábias lhe saissem da boca, o pastor, o pastor ali ao lado, mas longe no meio das ovelhas, que quem não deve não teme, e eu, o juiz e o delegado do Ministério Público à espera de ouvir e ir embora, que já ninguém tinha dúvidas do que tinha acontecido. Mas ele estava lá e tinha de dizer o que há muito devia ter sido ensaiado, que discurso em Tribunal é coisa importante e as palavras não podem sair trocadas.
Endireitou o casaco, pousou o chapéu no banco, com a mão direita firmou o guarda chuva no chão, pigarreou três vezes, abriu o braço esquerdo em gestos largos e quase teatrais e disse com voz grave e séria :
Senhor Doutor Juiz, antes de vir aqui perguntei a toda a aldeia, e a própria professora mo confirmou, que este rapaz que aqui está - e o rapaz finalmente endireitou-se no banco - é de uma inteligência lenta e de uma estupidez galopante.
Pronto. Foi absolvido. E pronto também, encontrei-me com o juiz e o ministério público debaixo da bancada, à procura da caneta que tinha acabado de cair, e a rir desalmadamente. Cobertos de vergonha, que a atitude não é das que mais nos orgulham, mas sem conseguir conter as gargalhadas.
Ainda hoje, nem sei porquê, chamo a esse senhor o meu António Silva...
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou terça-feira a Turquia por ter obrigado um pastor curdo de 71 anos, que vivia isolado, a cumprir o serviço militar, onde foi alvo de escárnio e de tratamentos que obrigaram à sua hospitalização. O recrutamento de Hamdi Tastan e a exigência de que participasse em exercícios reservados a soldados muito mais novos foram considerados «particularmente dolorosos e atentatórios da dignidade» do pastor, que não padecia de nenhuma doença mas foi hospitalizado após ter feito o serviço militar entre 15 de Março e 26 de Abril de 2000.
Hamdi Tastan, que é analfabeto e apenas fala curdo, foi pastor desde a infância e, a troco do seu trabalho, os proprietários do gado davam-lhe comida, roupa e um tecto no Inverno. Porém, quando a mulher morreu ao dar à luz o filho de ambos, teve de deixar de trabalhar para se ocupar da criança e os patrões denunciaram-no como desertor, contou Hamdi Tastan, que agora deverá receber da Turquia cinco mil euros por danos morais e mais mil euros referentes a custas judiciais.
A história deste pastor fez-me lembrar o meu pastor e as guerras dele com a guerra.
Não sei como é agora, mas há vinte anos, quando a tropa era obrigatória, ficavam dispensados de cumprir o serviço militar todos os mancebos que não tivessem a 4ª classe. Sempre achei alguma graça às prioridades do nosso Estado, que julgava como desertor quem fugisse à guerra e olhava com complacência quem fugisse à escola, que mais um analfabeto não fazia grande dano à pátria.
Certo é que podemos ser analfabetos, mas não somos burros e muitos se safaram de marchar invocando um total e completo desconhecimento das letras.
O meu pastor não teve essa sorte. Conheci-o quando o acusaram de falsas declarações, que tinha dito ao sargento que só sabia pastorear ovelhas, que escola tinha sido quase nenhuma, mas os documentos diziam outra coisa - tinha a escolaridade obrigatória sim senhor.
A primeira vez que o encontrei estava com a mãe. Tinham apanhado um comboio de madrugada para irem a Coimbra, falar com aquela advogada menina que lhes tinha calhado na rifa das nomeações oficiosas.
Juraram-me os dois a pés juntos que não havia 4ª classe nenhuma e que só podia ser engano dos senhores que escreviam aquelas folhas. O rapaz não mente e somos gente de respeito, ninguém quer fugir à tropa. Foi a mãe que me convenceu quando, já de saída, me assegurou com ar triste que este filho fora o mais prejudicado, que o irmão sim, tinha a 4º classe e fato novo, mas este senhora doutora, como pode ter feito o exame se nunca teve um fato novo na vida?
Não era preciso tanto para ir meter o nariz no processo escolar dele, mas assim tinha mesmo que ser, que o meu pastor não havia de ser condenado por uma mentira que não disse.
A explicação era simples e chamava-se passagem administrativa. Na altura em que devia ter ido para a escola, princípios dos anos oitenta, o ensino até já era obrigatório, mas pouco ou nada se obrigava. A matricula do pastor andou a correr secretárias de professores, mas a ele, ao próprio, só as ovelhas o viam. Quando fez 15 anos um funcionário mais expediente achou por bem recompensá-lo e deu-lhe com um carimbo as letras que ele não tinha. Só se esqueceram de o avisar, que este não era o pastor do Tou Chim e o telefonema ficou por fazer.
No dia do julgamento, e no mesmo comboio da madrugada, veio a família toda e os homens bons da aldeia para jurarem pela honra que o rapaz não sabia ler e não quis enganar ninguém. Foi uma das testemunhas que me marcou este processo para sempre. Era o decano da aldeia, um beirão pequenino, talhado no granito da serra, homem digno e respeitado, que tinha aceite dar a sua palavra pela palavra do pastor.
Quando o chamei para o Tribunal o ouvir trazia já numa das mãos o chapéu preto, que ainda não tinha tirado, e apoiava-se num enorme guarda chuva de cabo de madeira. A sala fez silêncio e neste momento vejo novamente todo aquele filme a passar na minha memória. No banco das testemunhas o homem pequeno, de traços duros e fato de casamento, a aldeia atrás esperando ansiosa que as palavras sábias lhe saissem da boca, o pastor, o pastor ali ao lado, mas longe no meio das ovelhas, que quem não deve não teme, e eu, o juiz e o delegado do Ministério Público à espera de ouvir e ir embora, que já ninguém tinha dúvidas do que tinha acontecido. Mas ele estava lá e tinha de dizer o que há muito devia ter sido ensaiado, que discurso em Tribunal é coisa importante e as palavras não podem sair trocadas.
Endireitou o casaco, pousou o chapéu no banco, com a mão direita firmou o guarda chuva no chão, pigarreou três vezes, abriu o braço esquerdo em gestos largos e quase teatrais e disse com voz grave e séria :
Senhor Doutor Juiz, antes de vir aqui perguntei a toda a aldeia, e a própria professora mo confirmou, que este rapaz que aqui está - e o rapaz finalmente endireitou-se no banco - é de uma inteligência lenta e de uma estupidez galopante.
Pronto. Foi absolvido. E pronto também, encontrei-me com o juiz e o ministério público debaixo da bancada, à procura da caneta que tinha acabado de cair, e a rir desalmadamente. Cobertos de vergonha, que a atitude não é das que mais nos orgulham, mas sem conseguir conter as gargalhadas.
Ainda hoje, nem sei porquê, chamo a esse senhor o meu António Silva...