Hinos aos deuses, não, os homens é que merecem, que se lhes cante a virtude, bichos que cavam no chão, actuam como parecem, sem um disfarce que os mude*

Em Setembro de 2001 eu vivia numa pequena cidadezinha de província que se andou agora nas bocas do mundo porque o miúdo da casa do lado usou um saca rolhas quando já lhe tinha saltado a tampa, na altura era só uma terra chata e desconhecida com um nome chato e comprido. Por ali pouca coisa acontecia digna de nota e o único sobressalto vivia-se quando tocava a sirene dos bombeiros e parávamos por momentos para lhe contar os toques, um para acidente, dois fogo fora, três fogo na terra, curiosidade satisfeita e lá caiu mais um boi num poço, está um silvado a arder ou a frigideira da sardinha aqueceu demais.
Foi lá, muito longe de Nova Iorque e muito antes de Cantanhede lhe ter aparecido nas notícias dos jornais, que eu vi os aviões e as torres e as mortes e foi lá que a minha filha mais nova acrescentou uma palavra diferente às muitas que os três anos de vida já lhe tinham ensinado - talibã.
Os talibãs, os homens maus, entraram-lhe imaginação a dentro e povoaram-lhe os pesadelos e mesmo lá, longe muito longe dos mapas do medo, longe muito longe dos olhos da Al Quaeda, naquela terra chata onde nada acontecia, no dia em que viu a igreja de paredes picadas e coberta de andaimes agarrou-se à minha mão e quis saber se também tinham sido os aviões a fazer aquilo.
Lembro-me muito bem de quando eu era criança e sei que há memórias que resistem à lógica e ao tempo portanto consigo perceber perfeitamente que ela agora, do alto, muito alto, dos seus 13 anos me diga que nunca conseguiu deixar de pensar no bin Laden como um homem enorme, de barba comprida, que pegava em aviões com as mãos e os atirava contra prédios para matar pessoas e percebo também que no dia em que soube que ele morreu, ou que o mataram, o mundo dela tenha ficado menos assustador e tenha dado vivas por isso. O monstro que lhe fazia medo tinha finalmente sido destruído e se era um homem também, e se um homem morreu, isso não lhe tirou o sorriso da cara porque ali, naquele momento, ele era só o que tinha escolhido ser, ele era o pesadelo, ele era a ameaça que chegava tão longe como longe era a igreja entaipada, ele era o bicho papão.
Agora, depois do alívio, podemos voltar todos a ser civilizados e podemos discutir ad eternum a justiça daquela execução e a falta de compaixão de quem festeja a morte de um homem mas isso em nada diminui a nossa humanidade, confirma-a e acrescenta-a.

Não sei se este vídeo é fabricado mas se o é aquele soldado deveria receber um Óscar porque em poucos segundos foi o Homem, foi todos os Homens, fui eu também.

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